sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

O ESPIÃO DO LAGO BAIKAL

Na vastidão do planalto siberiano, meus olhos observavam um ponto negro e longínquo mover-se no horizonte branco, que se fundia com o céu prenunciando mais uma noite de rigoroso inverno para os moradores de Irkutsk. Distante alguns minutos da cidade, sob o alto de um penhasco eu podia observar o lago Baikal, misterioso elemento que dominava aquela geografia fria e encantadora. Meus olhos detiveram-se por trás do binóculo enquanto via aquele pequeno ponto atravessar completamente o lago congelado, riscando o chão de gelo numa linha visível que serpenteava de uma extremidade a outra do lago, rumando em minha direção. O silêncio do inverno foi cortado pelo ruído distante, mas reconhecível dos latidos dos cães que puxavam o trenó; incansáveis ajudantes, ali na imensidão daquele lago de gelo, imersos na grandiosa e fria solidão daquela paisagem, eu podia vislumbrar a silhueta disforme da matilha que arrancava contra a neve puxando uma imensa pilha de mantimentos e bagagens, juntamente com o condutor envolto em um grosso casaco que lhe cobria todo o corpo. As lâminas do trenó salpicavam estilhaços de gelo cortando o piso que parecia um espelho natural a refletir o céu sob minha cabeça.
Observei mais uma vez fixamente através das lentes, e notei que o condutor parou o trenó sob o chão frio e escorregadio do lago. Os cães se ajuntaram num único corpo numa tentativa de amenizar o vento congelante da Sibéria que implacavelmente os açoitava. Abriu um dos sacos de mantimento e retirou um rifle de caça, apontando em minha direção dando-me tempo apenas para me abaixar por trás de um rochedo. O disparo da arma causou um estampido repetitivo que ecoou na vastidão serene daquela natureza, e percebi que a bala passou a poucos metros de meu corpo, demonstrando a habilidade daquele exímio atirador, cujo disparo havia sido realizado de tão longa distância.
- Ele nos descobriu Yuri!!!...ele nos descobriu!!... – meu agitado parceiro falava apressadamente puxando-me para trás do rochedo... – vamos embora!! Yuri!! Vamos embora!!...
Desvencilhei-me de suas mãos e ordenei-lhe que ficasse calado, afirmando que jamais abandonaria meu posto enquanto não cumprisse a missão que me fora designada pelo general do exército soviético: interceptar um espião alemão que havia caído prisioneiro dos russos durante a batalha de Stalingrado, mas que havia conseguido escapar de um campo de prisioneiros ao norte de Bratsk, vindo parar próximo a Irkutsk, minha cidade natal.
- Tolo!.. como foi que você se tornou tenente Andrei?... acredita mesmo que não previ isto? Observe e aprenda seu covarde! Saiba que não preciso nem de minha arma para prender este homem, espere aqui!. – dizendo isto entregou o fuzil para o tenente e começou a descer a trilha do penhasco que o levaria diretamente para o lago.
O medroso oficial assumiu o lugar de Yuri e observou cuidadosamente através do binóculo em direção ao lago. Então pode distinguir que o condutor do trenó, agora mais próximo, havia parado novamente colocando a sua arma na superfície branca do lago, e permanecendo de pé próximo aos cães, ao lado de uma bandeira amarela fincada no chão de gelo. Passaram-se vinte minutos até reconhecer a figura do capitão Yuri aproximando-se do espião e carregando o que parecia ser uma corda; parou a uma distância de dez metros de seu inimigo alemão e arremessou-lhe uma das extremidades da corda. Mais alguns minutos e o espião foi preso pelo capitão, que olhou na direção do tenente acenando-o ao longe com um sorriso de satisfação no rosto.
Quatro horas depois o tenente Andrei dividia um copo de vodka com o capitão Yuri, num dos refúgios para o soldados russos, e depois do primeiro gole, não conseguiu conter a pergunta inevitável:
- Capitão, como fez aquilo? Como conseguiu desarmar e prender o espião alemão?
Yuri retirou do casaco um pedaço de papel dobrado e entregou para o tenente dizendo-lhe:
- Coloquei este bilhete na bandeira amarela que o espião encontrou – estendeu a mão protegida por uma luva e entregou o bilhete para o tenente que o desdobrou lendo as seguintes palavras:
Está pisando no ponto mais frágil do lago, se dispararmos nossas armas o piso de gelo se romperá e será engolido pelas águas congelantes do Baikal que o matarão em menos de um minuto. Se tentar fugir disparo minha arma e lhe asseguro que não conseguirá dar mais que dois passos antes que submerja no lago. Coloque tua arma no chão, afaste-se e aguarde-me que estou indo ao teu encontro”.

sexta-feira, 12 de setembro de 2008

AQUELA NOITE DE INVERNO EM EDIMBURGO

Nunca vou me esquecer do dia em que recebi Eduard Frank Albiern na porta de minha casa. O vento cortante da noite aliava-se ao negro de um céu sem estrelas, cuja lua encoberta por uma espessa névoa recusava-se a iluminar nossas faces. Ali postado na porta de casa, enquanto os olhares de dentro fitavam-no com um certo temor e curiosidade, vislumbrei a imagem de um homem que carregava uma pequena bolsa de couro nas costas. O semblante cansado e sujo mal podia ser distinguido devido à grossa barba que lhe encobria parcialmente o rosto; mas os olhos escuros revelavam cansaço e tristeza na expressão riscada da pele, que carregaria as marcas de sua vida para o resto de seus dias. Trajando um casaco preto sujo de terra, e uma calça marrom rasgada no joelho esquerdo, era impossível não sentir o odor do andarilho que há dias não tomava banho. Meu pai, um homem alto e discreto de feições sérias, que vestia uma calça de linho combinado com um colete preto, que se ajustava ao seu corpo deixando-o extremamente elegante, abservava à porta; então quebrou o silêncio diante da assustadora visão me tranquilizando:
- Tudo bem Erik!, esse homem é meu convidado...tudo bem filho!,...deixe-o entrar... -voltou a colocar o cigarro na boca.
Assenti com a cabeça e dei passagem para o homem que adentrou em casa, provocando com as botas um ruído no piso de madeira. O silêncio pairou sobre o ambiente e foi cortado pelas palavras de boas vindas de meu pai. Virei-me para trás e pude contemplar a expressão de espanto que se estampava na face de minha mãe, cujos olhares severos e recriminadores já recaíam sobre a atitude de meu pai, que conduzia o misterioso personagem pelo corredor até o quarto de banhos, entregando-lhe uma toalha e algumas peças de roupas à porta do aposento.
Vinte minutos depois estávamos todos a mesa de jantar. Uma mesa retangular dominava o centro da sala, meu pai levantou-se para remexer a lareira atiçando o fogo e colocando mais alguns tocos de madeira. Meu irmão permanecia imóvel com o olhar cabisbaixo, motivado pela sua infantil curiosidade atrevia-se a fitar Eduard Frank nos olhos por breves instantes, para logo em seguida retorná-los para o seu prato. Sentado bem a minha frente observava o homem que adentrara a minha casa, agora vestindo um casaco azul escuro sob uma camisa branca, além de uma calça preta amarrada a cintura com um cordão, e com o rosto barbeado; adquirira um aspecto agradável. Minha mãe colocou um cesto com diversos tipos de pães no centro da mesa, coberta com uma toalha manchada de vinho e de café, enquanto meu pai de volta a seu lugar, virava um garrafão de rum sobre o copo do andarilho enchendo-o quase até a boca, e depois, servindo-se igualmente disse:
- Beba isso meu amigo, neste frio aqui desta terra, rum é uma das poucas coisas ainda capaz de nos aquecer – o homem estendeu a mão e puxou o copo para perto de si bebendo quase todo o rum em apenas dois goles.

Naquela noite o vento gélido teimava em atravessar as pequenas frestas das janelas e portas e tocar-nos as faces, teimava em ameaçar as chamas amareladas das velas, que projetavam nas paredes sombras dançarinas a nos ameaçar com o prenúncio de uma possível e iminente escuridão. Sentado ao lado de meu irmão, observava o movimento das luzes quase se apagando, ou retornando mais intensas e iluminando misteriosamente a face de Eduard Frank Albiern. Tive a impressão de que por alguns segundos, era observado pelos olhos daquele homem enquanto as sombras cobriam-lhe o rosto. De repente parou sua refeição, seus olhos percorreram as paredes onde estavam dois quadros que foram adquiridos a pedido de minha mãe, entusiasta admiradora da arte, e detiveram-se num sabre prateado que pertencia a meu pai; tal objeto que agora destinava-se a decorar as paredes juntamente com os quadros, o acompanhara em seu trabalho durante onze anos em que servira com soldado da guarda na cidade de Edimburgo, antes de tornar-se agricultor. Quando minha mãe trouxe uma grande panela de sopa a mesa, o cheiro dos temperos invadiu o ambiente, e depois de nos servir, finalmente escutamos meu pai relatar que conhecera Eduard Frank Albiern há doze anos, e que durante quatro anos haviam defendido juntos as fronteiras da cidade de Edimburgo, dos levantes populares como soldados da guarda; depois disso Eduard fora transferido junto com um grupo de soldados, para salvaguardar o porto de outra cidade sob ataque de piratas, e assim nunca mais haviam se encontrado, até o dia em que caminhando pelo centro de Edimburgo, ao passar por trás de uma catedral meu pai ouvira uma voz chamando por seu nome nos fundos da igreja. Ao se aproximar reconheceu imediatamente o amigo e soldado, apesar do aspecto abandonado e assustador que o acompanhava pelas ruas da cidade. Comovido pelo estado do amigo, recomendou-lhe que fosse para sua casa dando-lhe toda a informação acerca do endereço de sua propriedade, e assim Eduard Frank Akbiern viera bater em nossa porta naquela noite.
Ouvíamos o ruído do vento açoitando as árvores, quando uma fina chuva começou a cair sobre nossa casa. Ainda na mesa de jantar saboreávamos um chá, enquanto meu pai e seu convidado haviam retornado aos copos de rum. Minha mãe havia se retirado para ler um livro na outra sala, enquanto eu juntamente com meu irmão, permanecia absorvido pela história dos dois soldados guardiões da cidade de Edimburgo, sedentos por desvendar outras aventuras do passado da vida de meu pai. Foi quando tomei a ousadia de indagar ao nosso convidado acerca de seu paradeiro, que o levara ao lastimável estado em que fora encontrado por meu pai, fazendo-lhe a seguinte pergunta:
- Sr. Eduard, porque o Sr. tornou-se um andarilho? – minha pergunta lançou sobre mim um olhar severo de meu pai, que foi interrompido pelas próprias palavras de Eduard Frank que gesticulando:
- Calma Marcus,...não recrimine o garoto...permita-me contar-lhe o motivo.
Meu pai descansou novamente na cadeira, bebendo mais um pouco do rum, e permaneceu em silêncio ouvindo as primeiras palavras daquele homem que nos relatou suas desventuras da seguinte forma:
- Depois de patrulhar o porto de Aberdeen por quatro anos, tornei-me um promissor homem de negócios na cidade, servindo a diversos homens de proeminência social no treinamento de suas guardas pessoais na arte do sabre. Consegui estabelecer-me num velho depósito, que o transformei num elegante local para aonde acorreram em pouco tempo muitos admiradores da esgrima. E assim conheci Claude Vincent Asper, jovem dotado de brilhante talento no manejo do sabre que alcançou rapidamente notoriedade no meio. Em pouco tempo consagrou-se como vencedor da maioria dos duelos travados, cujo reconhecimento de seu nome trouxe-lhe ascensão social juntamente com declínio moral...- interrompeu sua fala enquanto permanecíamos calados esperando pela continuação, bebeu mais um pouco do rum e novamente acalmou meu pai que o desobrigava de contar-me qualquer coisa, então Eduard Frank Albiern olhou-me fixamente e prosseguiu:
- Digo isto garoto porque quando as armas de um homem o levam a romper o limite da honra e da dignidade humana, então é sinal de que ele já não deve mais portá-las, e foi isso que ocorreu com Claude Vincent quando decidiu duelar com um amigo pessoal de minha estima chamado Orlando Prisquik; o motivo de suas desavenças com meu amigo foi o insulto proferido contra a noiva dele, a bela Emma, não vou proferir as palavras por uma questão de decoro, mas basta dizer que qualquer homem tomaria o que Claude Vincent disse naquele dia a Orlando Prisquik como um grave insulto contra sua mulher. No ímpeto de suas agressões, naquela mesma data marcaram a data do duelo para dali a cinco dias no campo de Pelak, uma planície ao norte de Edimburgo. Nos dias seguintes tentei de todas as formas dissuadir ambas as partes a desistirem do duelo, procurando outra saída para se escusarem do desentendimento, mas minhas tentativas foram em vão. Estava desesperado por saber antecipadamente que o desfecho do duelo vitimaria Orlando Prisquik deixando Emma inconsolável, diante da perspicácia e da rapidez imbatível de Claude Vincent no sabre. No dia do combate implorei a Claude Vincent que refletisse acerca de sua superioridade diante do seu rival, rogando-lhe que considerasse outra forma de duelo. Mas recebi o desdém de um ex-aprendiz que demonstrando a maior frieza montou no seu cavalo, e dirigiu-se ao campo de Pelak decidindo o duelo em menos de um minuto, com um único golpe que atravessou o pulmão de meu amigo.
Parados sobre a mesa permanecíamos com os olhos congelados nas palavras de Eduard Frank Albiern, que prosseguiu com a história.
- Quando cheguei ao campo de Pelak encontrei o corpo de meu amigo Orlando inerte no colo de Emma que chorava intensamente. E conversando com o juiz do duelo, um velho magro com um traje impecável e uma cartola elegante que nos observava, tomei conhecimento de que Claude Vincent já havia vitimado mais três homens, em covardes duelos que jamais deveriam ter acontecido devido à superioridade do meu ex-aprendiz na espada. Voltei para Edimburgo, fechei meu local de trabalho no dia seguinte e jurei que nunca mais ensinaria ninguém na arte da esgrima. Vendi os bens que possuía, reuni as poucas economias que guardei e as entreguei a Emma e as demais famílias desamparadas, cujos maridos haviam sido mortos pela lâmina do temido espadachim. Passaram-se algumas semanas e diante da escassez de recursos não pude permanecer na estalagem que me abrigava há três anos. Foi quando fui parar nas vielas de Edimburgo até encontrar seu pai.
O visitante inclinou-se em minha direção, e com a mão gesticulando no ar falou-me atentamente:
- Escute garoto!...lamento profundamente o dia em que decidi ensinar a arte da esgrima para estes homens, hoje convivo com o remorso de ter armado e ensinado homens como Claude Vincent a matar com a arte que aprenderam de mim, convivo com os fantasmas das vítimas de meu ex-aprendiz a me atormentarem de noite em meus sonhos,... posso não ter desferido o golpe garoto, mas também sou culpado destas tragédias...portanto!,...cuidado com o conhecimento que delega a outras pessoas...
Os braços de Eduard Frank puxaram a bolsa de couro para o seu coloazia, e sua mão esquerda reitrou do interior uma carta que colocou a minha frente. Meu pai levantou-se de sua cadeira, sentou ao meu lado, e juntos lemos as seguintes palavras numa bela caligrafia desenhada:
“Prezado Sr. Claude Vincent,...é sabido que o Sr. Eduard Frank Albiern, amigo pessoal de meu sincero respeito e admiração, tem tentado há alguns dias impedir este duelo, e considerando o fato de que todas as suas tentativas se revelaram infrutíferas, restando apenas um dia para o acontecimento, venho recorrer ao passado para tentar dissuadi-lo de tal feito, invocando para isso suas memórias da época dos duelos no estabelecimento de meu citado amigo; fazendo-lhe a revelação de que a minha morte seguramente resultará na tua, porque sou o único que detém o segredo para a cura de uma doença que o esta consumindo neste exato momento. O meu pai, alquimista reconhecido na cidade e médico pessoal de vossa família, revelou-me pessoalmente o mal que o alfige, por ocasião de um de nossos encontros que reunia um grupo de esgrimistas, e que se deu as vésperas de nosso duelo, entregando-me o medicamento que segundo suas próprias palavras lhe extirparia tal doença, na certeza de que tal revelação pudesse impedir este combate. Mas decidi adotar uma postura diferente reservando ao destino a sorte de minha vida, assim, se o duelo se realizar e se a minha morte sobrevier, o que certamente ocorrerá devido a sua superior habilidade que inevitavelmente sou obrigado a reconhecer, então você também morrerá, pois o secreto medicamento encontra-se nas mãos de um amigo de confiança que também detém uma cópia desta carta que esta lendo nesse momento, o qual lhe asseguro que jamais descobrirá, a despeito de todos os esforços que possa empreender para obter tal intento. Porém se demonstrar compaixão e desistir do duelo, então receberá na data marcada para o nosso enfrentamento, o medicamento que me foi confiado por meu pai para a cura de sua enfermidade. Decidi apostar em tua própria decisão Sr. Claude Vincent, assim se o pior me acontecer, tornar-se-á no teu próprio carrasco. Tomei a liberdade de enviar esta carta no dia do nosso duelo, portanto acredito que estará recebendo-a em dois dias, se tomou a decisão prudente desconsidere estas palavras e sigamos cada um com nossas vidas, mas se foi irredutível nos teus atos, desejo que estas palavras o incomodem até o teu último sopro de vida que certamente não tardará a chegar ,...Com respeito...Orlando Prisquik.”
Levantei os olhos em direção a Eduard Frank Albiern, e observei ele remexer a bolsa de couro novamente, retirando um pequeno frasco de vidro tampado com um rolha e contendo um líquido azul claro. Meu pai permanecia calado deixando escapar aquele sorriso discreto, de um ouvinte que certamente já tinha conhecimento do desfecho de tal narrativa, apenas aguardando para constatar minha reação. As palavras de Eduard Frank Albiern apenas confirmaram o que minha intuição já me dizia:
- Este é o remédio que Orlando Prisquik me entregou junto com a carta que você leu Erik. - disse-me Eduard Frank Albiern, colocando o frasco sob a mesa próximo a mim.
- Inacreditável....quer dizer que Claude Vincent está com os dias contados?...patife!...- não consegui esconder um ar de satisfação enquanto analisava nas mãos o pequeno vidro que continha o milagroso líquido.
- Isso mesmo garoto,...ironicamente meu estado de miséria veio auxiliar-me neste momento da vida, porque inúmeras vezes cruzei com Claude Vincent pelas ruas de Edimburgo, mas ele não me reconheceu devido a meu aspecto, certa vez chegou a me empurrar e agredir tratando-me como um verme insignificante. Nos dias que se seguiram pude observar que caminhava apressadamente e com o semblante preocupado, levava nas mãos um pedaço de papel parecido com este que vocês acabaram de ler.
Não havia palavras a dizer, pensando em toda a história que acabara de ouvir, era difícil acreditar que por trás de um maltrapilho que batera a minha porta, escondia-se um brilhante esgrimista consumido pelo arrependimento, mas que colocaria um fim as crueldades de Claude Vincent. Permaneci em silêncio, e ao me virar para o lado notei que meu irmão mais novo já havia sido retirado da mesa por minha mãe, certamente diante do teor da narrativa de Eduard Frank Albiern. Olhei para a parede a minha esquerda e pela primeira vez observei aquela arma demoradamente, o sabre prateado com detalhes entalhados reluzia com a luz de velas, o brilho corria sob a lâmina desfazendo-se, e subitamente reaparecia, com se clamasse para que a enxergasse além de um mero instrumento sem uso, que com o passar do tempo, havia se transformado num objeto de decoração na parede de tijolos daquela casa. Imaginei que histórias ocultariam uma arma, imaginei onde estaria Claude Vincent naquele momento.

quinta-feira, 28 de agosto de 2008

O tempo me guardou você - Ivan lins

Depois das letras escritas, uma pausa para a letra musicada, e esta canção é para você meu amor,... amo você demais minha linda artista...

sexta-feira, 8 de agosto de 2008

A MISSÃO DO CAVALEIRO AHIB SIM

Os olhos de Terik Shamuk mal conseguiam permanecer abertos diante da tempestade de areia que invadia a sua tenda na planície de Fulkaham. Num passe de mágica o sol escaldante do deserto desapareceu no seu momento de ápice, dando espaço a uma espessa massa de pó amarelada que se elevava no horizonte, aproximando-se do acampamento numa nuvem de areia assustadora que avançava em direção ao pequeno grupo de tendas, devorando as gigantescas dunas e agitando os animais. Os ajudantes de serviços corriam em meio à escuridão de poeira carregando bagagens e suprimentos, algumas mulheres atravessavam de uma tenda para a outra carregando crianças de colo que choravam, outros criados colocavam vendas sobre os olhos dos cavalos que permaneciam presos, ou simplesmente soltavam-nos das cordas para que tentassem fugir diante da visão assustadora; ali na imensidão vazia e intimidadora daquela natureza eram engolidos pela areia, jogados pelo vento como frágeis bonecos insignificantes diante da força do deserto. Num rápido movimento Terik Shamuk colocou a cabeça pra fora da tenda, que lutava presa com as amarras ao solo para não ser arrancada pela fúria do vento. Seus olhos negros observaram a tempestade engolir o acampamento por completo, voltou para dentro e cobriu a pequena fresta de tecido que expunha sua visão e sua pele queimada e sulcada pelo clima árido do lugar, único espaço de seu corpo que ainda permanecia descoberto; e ali abraçado pela tempestade temida por gerações de nômades, envolto pela fantástica e assustadora tempestade do deserto que habitava as fábulas dos persas há muitos séculos, rogou a Alá que poupasse sua vida e de seus companheiros mercadores.
Vinte minutos se passaram com o som do vento cortante esbarrando no tecido da tenda e agitando-a com violência, mas quando a tempestade cessou, assim que saiu do seu interior, o mercador de especiarias constatou que grande parte de seus amigos havia desaparecido, algumas outras tendas não resistiram e foram levadas pelas rajadas, olhou a sua direita e aonde deveria haver um conjunto de cinco tendas que abrigavam mantimentos, agora havia somente uma enorme montanha de areia que sepultara vários caixotes dos mais diversos suprimentos que seguiam para a cidade do Cairo. Terik desenrolou o turbante descobrindo seu nariz e sua boca e pode ver ao longe, na fina nuvem de areia que se desfazia com a luz do sol a perfura-la em inúmeros pontos, rompendo aquela atmosfera escura que pairava sobre o acampamento, a silhueta de um cavaleiro que a rápidos trotes aproximava-se da sua tenda. O rastro discreto de areia que se levantava no cume de uma gigantesca duna foi ficando maior, e aos poucos o som dos rápidos galopes do cavalo árabe que afundavam na areia do solo tornou-se mais fortes até parar diante da pessoa de Terik Shamuk. Em cima do belo animal de respiração ofegante ainda assustado pela tempestade, um homem alto de expressão séria, com cabelos negros e grandes olhos semicerrados observou Terik e parte do acampamento que milagrosamente permanecia de pé. Trajava longos tecidos negros e na cintura carregava uma espada sarracena ricamente adornada com desenhos simbólicos. Voltou-se para Terik fitando-o nos olhos e perguntou-lhe:
- Procuro por Omar Yshtaham?...você o conhece?
- Sim,...eu o acompanhei durante a primeira etapa da viagem,...eu o acompanhei até o oásis de Fulkaham...e depois nos separamos...ele seguiu sozinho...
- Em que direção?...perdoe-me pela brevidade de minhas palavras que me impediram de apresentar-me,...meu nome é Ahib Sim, mensageiro enviado pela profetiza Eva, nobre mulher conhecida na corte de Sukramm; sigo numa missão específica que me foi designada por tal mulher...
O homem parecia apressado tentando controlar o animal arredio, e a luz do sol retornava com toda a intensidade revelando um cenário de desolação no acampamento. Terik estendeu seu braço para o norte apontando na direção tomada por Omar Yshtaham ao deixar o oásis de Fulkaham e lhe disse:
- Ele seguiu nesta direção,... mas não estava só,...eu me lemb,...
- Eu sei!...interrompeu-o subitamente o cavaleiro - ...a profetiza Eva predisse que ele estaria acompanhado por um soldado quando partisse de Fulkaham;...mais uma vez peço minhas desculpas pela ausência de informações mas não há tempo para mais palavras... - e dizendo isto virou seu animal com habilidade partindo em direção ao norte.
Terik o acompanhou com os olhos até o misterioso cavaleiro desaparecer por completo no horizonte engolido pelas montanhas de areia. Mais alguns minutos e o acampamento foi se reagrupando, os homens pareciam lutar contra o tempo na busca pelos sobreviventes desaparecidos, alguns se juntavam em pequenos grupos e cavavam desenfreadamente em vários pontos do solo na busca dos amigos e mantimentos que foram tragados pela areia. Caminhando rapidamente pelo acampamento Terik pode ver uma mãe que chorava por ainda não ter encontrado o filho. Finalmente adentrou numa tenda aonde um de seus amigos estava deitado no chão, sendo atendido pelo médico que fazia um curativo no seu braço esquerdo, atingido por uma pá jogada contra o seu corpo pelo forte vento.
A viagem que separava o acampamento de Terik Shamuk do oásis de Fulkaham durava aproximadamente uma hora. O cavaleiro atravessava solitário o solo dourado e homogêneo da imensidão do deserto, deixando um rastro que em poucos minutos era encoberto pela areia; como que se ali mesmo naquele instante o deserto quisesse condena-lo àquelas areias,...ao esquecimento... Finalmente parou seu cavalo no pico de uma grande montanha de areia e observando o horizonte, localizou uma pequena mancha verde que se destacava na imensidão amarela do deserto. Como um pequeno espaço estranho àquele ambiente, o oásis de Fulkaham resistira às guerras, ao tempo, e sobretudo ao deserto, único ponto de abastecimento para as diversas caravanas que o atravessavam, tornara-se na última fronteira, no último porto a oferecer alguma segurança para os homens que ousavam tal intento. A vegetação viva e espessa do oásis contrastava com a uniformidade do deserto, grandes árvores cercavam um espaço disputado pelos homens e animais, cujo centro era ocupado por um pequeno lago cristalino cravado no coração daquele lugar. Uma pequena multidão aglomerava-se em volta de um poço para obter água, lançando os baldes abaixo que retornavam puxados pelas cordas. Por trás de alguns arbustos um grupo de camelos descansavam deitados a sombra de algumas árvores, enquanto os viajantes os preparavam amarrando sacos e bagagens sobre o lombo dos animais. O cavaleiro saudou um homem baixo, moreno, com a grossa barba branca envelhecida pelo tempo e com um turbante sob a cabeça, carregava um balde com água para os cavalos, apresentou-se como sendo um tratador de animais e ofereceu-se
para cuidar de seu cavalo em troca de algumas moedas, trabalho que foi aceito imediatamente.
O cavaleiro depositou algumas moedas de prata nas mãos do tratador, e quando preparava-se para partir, o velho homem o segurou pelo braço estendendo-lhe a outra mão que continha um envelope lacrado com o selo Real da casa de Omar Yshtaham; o velho o olhou fixamente, esboçou um sorriso enquanto permanecia com o braço estendido em direção ao cavaleiro e lhe disse:
- Esta mensagem foi deixada por Omar Yshtaham para o cavaleiro Ahib Sim, ele me disse que um cavaleiro vestido de preto o procuraria em alguns dias aqui, e me incumbiu de entregar pessoalmente esta mensagem.
O cavaleiro apanhou a mensagem, quebrou o lacre com o selo real e desdobrou o papel empoeirado. Uma curta mensagem numa caligrafia árabe dizia: “Prezado Ahib Sim,...fiel cavaleiro da casa real de Sukramm,...Se estiver lendo esta mensagem então minhas suspeitas se confirmaram e já não estarei no oásis de Fulkaham. No entanto rogo-lhe que embora tenha sido designado pela profetiza Eva, nobre mulher da qual dedico todo respeito e admiração, para encontrar-me e trazer-me de volta ao meu reino, que agora mesmo desista de tal intento pois jamais o farei,...e peço que retorne ao seu reino e sinta-se desobrigado desta missão através de minhas palavras escritas neste papel; afirmo-lhe que tenho forte motivo pra empreender a minha fuga, e temo que sua insistência em achar-me o leve a tal revelação que me colocou neste estado, o deixando inevitavelmente no mesmo situação em que me encontro hoje,... Omar Yshtaham”.
Os olhos de Ahib Sim observaram ao longe e mais uma vez perderam-se nas areias do deserto, confusos, imersos nas palavras de alerta de Omar Yshtaham para que desistisse de sua missão. Sua mente o questionava acerca de qual seria este forte motivo que o impeliria a retroceder, seus pensamentos buscavam esta resposta ao mesmo tempo que aumentavam-lhe a curiosidade acerca do mistério. Mas sabia que a idéia de retornar ao seu reino sem ter cumprido sua missão era inadmissível, e o faria se sentir inútil e fracassado diante da profetiza Eva.
A noite derramou seu manto sobre as areias quentes, e algumas poucas luzes de velas nas tendas do acampamento rompiam aquela vastidão negra do silêncio árido do deserto. O cavaleiro permaneceu a noite toda dentro de uma das tendas absorvido por seus pensamentos, e várias vezes releu a mensagem que tinha em mãos deixada por Omar; pela manhã tomou a decisão.
O cavalo invadia o deserto rapidamente em direção ao rumo tomado por Omar Yshtaham. Inclinado sobre o animal o cavaleiro apenas pensava em descobrir o motivo da fuga de Omar, refletia sobre o seu desaparecimento sem deixar qualquer notícia despertando o temor na casa Real, mas mantinha sobretudo o seu propósito de traze-lo de volta.
Depois de uma hora de viagem, a imagem angustiante e imutável da imensidão amarela daquele lugar foi transformada quando um pequeno ponto escuro ao longe sobressaiu aos olhos do cavaleiro, ao se aproximar a figura disforme foi ficando cada vez mais nítida, até desvendar-se aos olhos daquele homem na imagem de uma tenda tendo uma bandeira bem alta ao seu lado. O cavalo se aproximou e parou quase na entrada, não havia qualquer ruído ou vestígio da presença de alguém. O cavaleiro desmontou e desembainhou a espada caminhando vagarosamente em direção ao véu que balançava com o vento, e que cobria parcialmente a entrada da tenda. Suas mãos empurraram o véu para o lado, e então pode ver que no interior daquele local havia apenas um tapete colorido com uma vasilha de água ao lado de uma bacia contendo algumas frutas. Sobre o tapete um outro papel lacrado com o selo Real chamou a atenção de Ahib Sim, descansou a espada que brilhava junto a cintura, aproximou-se cuidadosamente e inclinou-se para pegar o papel, quando o trouxe próximos aos olhos pode ler a seguinte mensagem: “Ao desventurado cavaleiro Ahib Sim”, sentou no tapete e mais uma vez desdobrou o papel, então seus olhos percorreram as seguintes linhas:
“Meu nobre cavaleiro Ahib Sim,...Lamento profundamente que não tenha atendido a minhas recomendações, pois asseguro-lhe que o fiz apenas para sua própria segurança e descanso, mesmo não tendo o destino o levado de volta ao seu reino, no que certamente foi o meu maior anseio desde o momento em que tomei conhecimento de sua partida na missão que lhe foi designada pela profetiza Eva, respeito tua decisão de tentar encontrar-me, o que imagino que jamais conseguirá, entendendo ao mesmo tempo que sua busca infrutífera não me da mais o direito de priva-lo da realidade dos acontecimentos que me levaram a tomar minha decisão de partir. Tal determinação de sua própria pessoa merece ao menos que o motivo lhe seja revelado, por mais terrível que se apresente. Apenas desde já lamento pelo mal que lhe causarei depois que terminar de ler esta mensagem.
A explicação para tudo o que aconteceu certamente é a mais absurda de todas as circunstâncias que cruzaram minha vida, mas não menos real por isso. Não vou entrar em detalhes sobre como descobri o que lerá nas próximas linhas, mas o motivo de minha partida foi descobrir que o meu mundo,... que o nosso mundo meu amigo,... não passa de uma alegoria, de um engano, de uma montagem, de um mundo irreal.... Isto mesmo!,... peço meu nobre cavaleiro que leia minhas palavras exatamente como estão escritas, porque eu lhe asseguro com toda a minha certeza,... com toda a minha convicção,... que todo o nosso mundo sequer existe no plano da realidade, jamais existiu!...Este deserto onde você encontra-se neste momento, a tempestade de areia, as caravanas, o oásis, Terik Shamuk, o velho tratador de animais, eu e você meu nobre cavaleiro,... não somos nada mais do que invenção,... nada mais do que fruto da criatividade de alguma pessoa que simplesmente inventou uma história, um fábula, da qual somos meros personagens. Neste exato momento algum leitor esta lendo nossa história, passando seus olhos sobre estas linhas, tão ávido quanto você estava para descobrir esta terrível revelação. Talvez agora entenda que minha fuga, meu desaparecimento é a forma que encontrei de rebelar-me contra esta situação de apatia, de sempre estar a disposição do desconhecido leitor para deleita-lo com minha inocente vida de personagem literário.
Lamento profundamente que tenha sido o portador de tal notícia, mas relembro-lhe que foi sua própria decisão de encontrar a resposta que o afligia, quando não atendeu a minha recomendação, que o trouxe a esta mensagem. Imagino como está se sentindo neste exato momento meu nobre cavaleiro, e diante de tal revelação assombrosa não tenho mais palavras....com pesar,...Omar Yshtaham..."

Durante uma hora não houve movimento na tenda, sentado no tapete o cavaleiro refletia sobre cada palavra escrita por Omar. As vezes desprendia-se daquelas linhas e mantinha um olhar perdido, confuso, que atravessava o véu de entrada da tenda, e fitava o cavalo imóvel do lado de fora. Finalmente levantou-se, atravessou a pequena passagem encoberta pelo tecido e retorno ao deserto solitário, percebeu então que a sua direita o céu parecia estar mais escuro, uma outra tempestade de areia aproximava-se, mas desta vez não sabia mais no que acreditar. Montou no cavalo e ainda pode ver ao longe um pequeno grupo de camelos transpostando bagagens, seus olhos puderam distinguir apenas duas pessoas, pareciam um casal de amantes, ali, naquele lugar esquecido fugindo do mundo. O homem e a mulher montados no mesmo cavalo iam adiante, ela abraçava-lhe fortemente pelas costas enquanto distanciavam-se, enquanto desapareciam como todas as certezas que habitavam-lhe a mente até o dia em que resolvera encontrar Omar Yshtaham,...Então virou seu cavalo em sentido contrário ao da tempestade que levantava-se ao norte e partiu para o seu reino, mal sabendo se ele realmente existia...

domingo, 15 de junho de 2008

O BECO DE STA. ALBA

De pé com os braços cruzados e trajando o mesmo uniforme escolar, Elias Clader, Felipe Tornadori, e Ricardo Manintim, o garoto mais temido do ginásio também conhecido como Ricardo "boxeador", apelido que lhe conferia uma certa imunidade em todo o Colégio, observavam-me na entrada do beco de Sta. Alba. Em seu pequeno mundo circunscrito ao espaço do maior colégio da cidade, aonde subjugava todos os demais garotos pela força e tornava-se certamente na amizade mais desejada, Ricardo tinha seus domínios ameaçados apenas pela figura dos professores e do Diretor Ernesto Laurentim Lofer apelidado de "general".
Lançando um olhar para trás quando já caminhava pelo sombrio beco iluminado apenas pelo brilho das estrelas, pude vislumbrar o vulto cada vez mais distante dos três garotos imóveis e atentos, que pareciam ansiar por um desfecho inesperado para deleitarem-se as custas de meu fracasso. Lembro-me que tinha 15 anos quando decidi entrar no beco de Sta. Alba para cumprir o desafio que me fora imposto pelo grupo de Ricardo "boxeador", ou melhor pelo próprio Ricardo, afinal este era o preço determinado para que qualquer garoto da cidade quisesse conhecer Ingrid, sua irmã, e a garota mais bonita do Colégio. Como ninguém questionava suas decisões, Ricardo adotara uma tática bem diferente do simples uso da força física para intimidar os pretendentes, colocando-os frente a frente com o lugar mais assustador da cidade e deliciando-se com seus temores: o beco de Sta Alba.
As histórias contadas pelas pessoas sobre a misteriosa moradora nunca vista por ninguém ao longo de anos, que habitava um pequeno quarto no final do beco deram uma notoriedade sombria ao pequeno e estreito corredor de aproximadamente 30 metros que dividia dois prédios antigos não muito altos. Nas paredes sem janelas, manchadas e desbotadas pelo tempo, os fios de varal cruzavam-se desordenadamente inúmeras vezes, unindo ambos os lados e revelando apenas algumas peças de roupas, toalhas, e lençóis pertencentes a mulher. Como uma rua indesejada por todos os moradores, cujo final revelava uma porta de madeira com uma pequena placa com a enigmática inicial "L.L.D.", até mesmo durante o dia a passagem permanecia vazia, servindo apenas de abrigo para três gatos que escondiam-se nos jornais e caixotes abandonados espalhados ao longo do corredor.
Naquela noite fria enquanto me aproximava da porta, desviando-me dos tecidos que balançavam freneticamente no varal agitados pelo forte vento, observando as sombras delineadas que como espectros adquiriam vida em súbitos movimentos nas paredes, para desaparecerem logo em seguida e reaparecerem sob outros desenhos disformes, notei que era acompanhado por um dos gatos que habitavam o beco. A poucos passos da porta e tão perto do objetivo imposto por Ricardo de desvendar o significado das iniciais "L.L.D." inscritas na placa, virei-me para trás e constatei que os três garotos, agora apenas uma pequena silhueta distante que fundia-se com a escuridão, ainda continuavam a observar-me sem expressar qualquer gesto, inertes e ansiosos pelo que eu faria. Quanto a isso nunca tive dúvidas; desde o momento em que aceitara o desafio eu já sabia que não haveriam planos ou táticas para desvendar o mistério, a não ser utilizando-me do único método viável de bater na porta da moradora e perguntar-lhe pessoalmente sobre as letras. Ali postado na porta, depois de percorrer todo o beco de Sta. Alba já não havia como desfazer o meu ato, os passos denunciavam alguém que aproximava-se rapidamente da porta pelo lado de dentro respondendo as minhas batidas, parecia correr. Finalmente a porta se abriu vagarosamente.
O rangido preguiçoso das dobradiças revelou-me a mão delicada de uma mulher, que puxou a porta desvendando aos meus olhos um corredor com lindos tapetes coloridos decorados; bem ao fundo pude identificar um conjunto de mesas e cadeiras bem antigas, ricas em detalhes entalhados na madeira ocre que brilhava com a iluminação suave de um grande lustre de cristal, cuja porta de entrada do recinto me permitia ver somente a ponta, dando um aspecto de beleza incomum no que me pareceu ser uma sala de visitas.
- Não gostaria de entrar?
Meus olhos acompanharam aquela voz jovem e tranquila de uma mulher de aparentemente 30 anos que se apresentou a minha frente, muito bem vestida, estendeu sua mão em minha direção dizendo:
- Muito prazer,...eu sou Liz.
Por alguns segundos permaneci mudo diante da imagem daquela linda mulher educada, até o gato que me acompanhava ficou paralisado quando o brilho do interior da casa escapou para o beco iluminando parte da parede suja deixando meus desafiadores distantes completamente atônitos bem na entrada da viela.
- Sim, obrigado,... meu nome é Hugo Hertiz - estendi a mão e cumprimentei aquela mulher de gestos graciosos que me absorvia toda a atenção, longos cabelos castanhos cacheados escorriam-lhe pela face destacando ainda mais seus olhos verdes, um sorriso discreto realçava as maçãs avermelhadas de seu rosto pela brisa gelada da noite que invadia aquela casa.
Arrumei o pequeno gorro preto na cabeça, virei-me para trás, e agora sentindo-me vitorioso diante do desafio que me fora imposto, despedi-me dos garotos parados na entrada do beco com um ligeiro aceno de mão, aproveitando-me do meu momento de superioridade e entrando na misteriosa casa. A porta fechou discretamente e a escuridão dominou novamente todo o beco.
Em poucos passos atravessei o corredor acompanhado por Liz, e pude observar que as paredes estavam decoradas com quadros retratando paisagens e pessoas, alguns pareciam tratar-se de retratos de família. Finalmente vislumbrei por completo a sala que da porta revelava-me apenas parte da mesa e do lustre de cristal. Olhando para cima parado na porta de entrada da sala, parecia ver uma fusão de tons amarelados refletidos nos inúmeros cristais que compunham o grande lustre que dominava o centro do teto daquele ambiente; a minha frente a mesa retangular e as cadeiras delicadamente entalhadas num trabalho manual admirável conferiam um tom nostálgico mas elegante aquela casa; ao fundo da mesa dois sofás e uma pequena mesinha de vidro preenchiam harmonicamente o restante do espaço da sala. Minha anfitriã apontou-me um dos sofás convidando-me a me sentar.
- Que prazer recebê-lo Hugo,... saiba que espero por uma visita há vinte e oito anos,... e finalmente recebo-o em minha casa.
Sua primeira observação me deixou confuso, então sentindo-me mais a vontade perguntei:
- Vinte e oito anos?... o que quer dizer Liz?- Já estava cansada de chegar a porta e abri-la para deparar-me sempre com o beco vazio,... ou quando muito, com pessoas correndo ao longe desesperadas,... mal ouvindo meus gritos para não correrem.
- Como?... nunca ninguém te visitou Liz?
- Não,... ou melhor,... tentaram em todos estes anos,... mas fugiram antes que eu chegasse a porta para avisá-los e me desculpasse em nome do mordomo da casa.
- Avisá-los do que? - comecei a sentir um certo receio de ter entrado de imediato na casa de Liz, a conversa entre nós estava começando a ficar assustadora, mas não o bastante para deter a minha curiosidade.
- Avisá-los para não temerem o mordomo, apesar da sua aparência eu lhe garanto que Livingtom é o melhor trabalhador que tenho aqui, talvez não seja muito bom no trato com as pessoas, embora tenha me jurado que seu tratamento extremamente cordial nunca foi o bastante para detê-las à porta por poucos segundos que fossem. Sei que parece estranho mas durante todos estes anos Livingtom sempre se antecipou a mim,... acredite Hugo! ele é muito rápido, e assim ele sempre abriu a porta mesmo quando eu tentava impedi-lo, pois quando eu olhava para a porta la estava ele educadamente postado para recepcionar meus visitantes.
- Até hoje?... o que ocorreu então Liz?...o que fez com que você atendesse a porta?
- Eu não sei meu querido,... eu apenas ouvi suas batidas na porta já conformada de que Livingtom estaria lá para abri-la, então eu nem me apressei,... mas imagine minha surpresa quando cheguei ao corredor e vi que ele não estava a porta!... aí então corri enquanto você batia e finalmente consegui abri-la.
- E onde ele está agora?
- Está trancado no seu quarto - o semblante de Liz foi tomado de uma preocupação que em poucos minutos deu lugar a um choro, lágrimas começavam a escorrer-lhe pela face; estendeu a mão e apanhou o lenço de seda que eu lhe ofereci - temo que algo muito ruim tenha acontecido a Livingtom,... imagine Hugo!... pela primeira vez em vinte e oito anos ele não atendeu a porta,... algo do qual ele não abriria a mão por nada neste mundo!... quantas vezes eu briguei com ele, quantas vezes eu lhe proibi de abrir a porta, até coisas piores me passaram pela mente para impedi-lo!
Comecei a pensar na figura deste misterioso mordomo formando a imagem em meu inconsciente de uma pessoa vitimada talvez por alguma deformidade física, algo que o tornara assustador para os visitantes que haviam batido na porta, o que só aumentava o mistério e meu medo acerca do desconhecido Livingtom.
- Mas porque corriam dele Liz?... pelo que você me contou até agora imagino que este pobre homem deve ser muito assustador...
- Desculpe Hugo, mas eu não vou responder mais nada,... eu ainda não o vi hoje,... então porque não me acompanha até o quarto dele e descobrimos juntos o que ocorreu?... acho que não tenho coragem de ir lá sozinha,... mas não quero obrigá-lo a prosseguir e respeitarei sua decisão se quiser partir... - novamente irrompeu em choros preparando-se para levantar da cadeira.
Por alguns segundos eu fiquei completamente perdido na minha decisão, lembrei-me de minha mãe e suas broncas me alertando acerca do envolvimento com estranhos, imaginei ela naquele exato momento com o olhar severo me recriminando por ter apenas entrado na casa de Liz, e certamente me aplicando uma surra quando chegasse em casa devido ao meu atrevimento. Mas ela não estava lá naquele momento, e minha comoção pela mulher que transmitia uma certa franqueza em sua voz, me convenceram a subir para o quarto do mordomo.
Acompanhei Liz por uma escada que corria junto a parede, e após alguns degraus, deparei-me com outro corredor escuro no piso superior da casa. Apenas duas portas opostas em cada lado do corredor completavam o espaço cujas paredes agora já não apresentavam nenhuma decoração.
- Venha comigo Hugo - dizendo isto a misteriosa mulher dirigiu-se para a minha esquerda até o final do corredor, parando e encostando-se rente a porta colando seu ouvido na madeira para tentar escutar algum sinal do mordomo.
Parado ao seu lado eu olhava acima contemplando seu semblante de preocupação, diante da omissão de qualquer ruído proveniente do lado de dentro da porta. Com leves batidas na porta Liz rompeu o silêncio do ambiente:
- Livingtom!!... você está me ouvindo? - sua mão batia de novo na porta.
- Livingotm!...por favor!... - sem êxito a mulher forçava a maçaneta da porta que estava trancada do lado de dentro.
- É você Srta. Liz?... uma voz fraca e melancólica, mas que me era familiar escapou de dentro do quarto.Pela primeira vez pude ouvir a voz de Livingtom, o tom rouco e cansado não me deixavam dúvidas de que se tratava de alguém beirando os seus 80 anos.
- Livingtom, o que aconteceu?
- Há uma chave debaixo do tapete Srta. Liz
Abaixei-me imediatamente atendendo ao pedido de Liz, e após levantar o tapete marrom colocado bem a frente da porta do quarto, deparei-me com uma chave prateada presa a um cordão. Entreguei para minha acompanhante que destrancou a porta rapidamente e abrindo-a revelou-me uma visão que eu jamais esqueceria pelo resto de minha vida.
Deitado na cama com um aspecto cansado e doente, lá estava o "general". Com seu olhar profundo e seco observava-me em silêncio; seu semblante frio e circunspecto somado a pele pálida destacavam-lhe as rugas que cortavam seu rosto e passavam-me uma aparência desagradável. Reconheci aquele homem que permaneceu em silêncio me observando enquanto Liz arrumava o cobertor sobre seu corpo; tão autoritário aquele homem que conhecia, tão inflexível em seu mundo exterior mas ali naquela cama o contemplava tão frágil, tão entregue ao cuidado alheio, algo que ao menos para mim não combinava com aquela sua imagem dominadora que já conhecia, foi quando me veio a mente a seguinte indagação trazendo-me novamente a realidade:
- Liz, você me disse que ele se chama Livingtom?
- Sim Hugo...porque? - virou-se para mim ficando de costas para a cama.
- Eu conheço este homem Liz, mas ele chama-se Ernesto Laurentim Lofer e é o diretor do maior Colégio da cidade.
- Certamente Alfredo, mas permita-me explicar um detalhe - dizendo isto voltou-se novamente para o homem deitado que tossia, serviu-lhe uma xícara de chá quente que repousava sobre o criado, com cuidado arrumou o seu leito falando-lhe no ouvido algumas palavras que não pude distinguir, e convidou-me a descer novamente até a sala.
De volta a sala e sentado no mesmo sofá, percebi que Liz demorava para me explicar aquela situação confusa, finalmente tomou coragem, inclinando-se na minha direção, e bem próxima olhando-me fixamente nos olhos disse:
- Hugo, eu vou lhe contar um segredo, e o que vou lhe contar vai parecer estranho, vai ser difícil de acreditar, mas eu quero que acredite porque eu lhe asseguro que tudo o que disser é verdade, não tenha medo.
Naquele instante minha respiração diminuiu, e todo o meu ser foi envolvido pelo efeito daquelas palavras que aguçaram minha curiosidade.
- Hugo, esta não é uma casa comum, é uma casa diferente de todas as demais.
- Ainda não entendi Liz, eu percebi que ela é um pouco diferente de todas que eu conheço com todos estes objetos de decoração, coisas antigas...
- Pode até ser Hugo, mas não me refiro a isto, estou dizendo que a casa detém um poder mágico e transformador sobre as pessoas que entram aqui.Minhas palavras cessaram, e observei Liz paralisado pela história enquanto prosseguia:
- Hugo, qualquer pessoa que entre nesta casa, torna-se aqui dentro o oposto é lá fora, ocorrendo uma espécie de recriação da pessoa com uma inversão dos traços de sua personalidade.
- Não entendi nada...
- Tudo bem,...eu vou tentar explicar,...vamos tomar de exemplo o Livingtom.
- Você está dizendo o Ernesto "general" Liz?
- Sim,.. quando as pessoas entram aqui elas adquirem outro nome.
- E como você sabe os nomes?- Eu apenas pergunto e elas me dizem, foi assim com Livingtom,...quer dizer... com o "general", me parece que é assim que ele é conhecido lá fora.
- Isso mesmo Liz, todos o conhecem assim.
- Para você entender a magia da casa, me responde a seguinte pergunta: Como o "general" é visto lá fora Hugo? Como é o comportamento deste homem? Como é o jeito dele?
- Quase todo mundo acha ele um homem dominador, autoritário, o tipo que assusta e que quer se impor usando inclusive a força se for preciso.
- Viu,...eu já imaginava isto,... agora me responde outra pergunta Alfredo: sabe como é o jeito dele aqui na casa? Ao menos percebeu qual a função dele aqui?
- Ele é um mordomo Liz, até agora acho isto muito estranho, não consigo imaginar este homem assim.
- É porque aqui ele não domina e nem age autoritariamente Hugo, aqui ele serve, é um mordomo que atende a porta, entendeu agora?
- Estou começando a entender Liz, mas e quanto a mim? o que você vê de diferente agora? você vê alguma característica que eu não apresentava lá fora?
- Não Hugo, eu não vejo nada, ainda não lhe contei, as crianças como você são imunes a magia da casa.
- Imunes?
- Sim, quer dizer que não são atingidas pelo efeito, e isto porque as crianças são naturalmente expontâneas e não dissimulam como os adultos.
- Dissimulam?
- Sim Hugo, dissimulam quer dizer escondem algo, ocultam.
Continuamos a dialogar naquela sala, enquanto permanecia atento as palavras daquela mulher ilustrando-me alguns casos que resolvera contar-me, e assim fiquei sabendo de pessoas que haviam entrado naquele recinto, cidadãos anônimos ou personagens notórios daquela cidade que tinham seu comportamente e personalidade radicalmente transformados, invertidos; os soberbos tornavam-se humildes, os pacatos tornavam-se agressivos, os reflexivos transformavam-se em pessoas impulsivas e passionais, enfim, qualquer traço da personalidade de qualquer indivíduo que adentrasse aquele recinto, exceto uma criança, era transformado no seu exato oposto pela magia da casa, como se ali naquele lugar qualquer indivíduo estivesse parado diante de um "espelho as avessas" que lhe revelaria sua outra face.
A intrigante conversa com Liz me deixou totalmente alheio ao tempo, e somente me dei conta do adiantado da hora quando o relógio dourado de parede que destacava-se naquela sala, despertou-me com longas badaladas indicando que já eram 22:00hs. Não tive tempo de prosseguir com a conversa embora desejasse fazê-lo intensamente, e enquanto me dirigia para a porta de entrada atravessando o longo corredor ricamente decorado, não pude deixar de fazer as três últimas perguntas daquela noite:
- Liz, por que você nunca saiu da casa?
Por alguns breves instante aquela linda mulher me olhou, esboçou um sorriso discreto e respondeu-me com muita tranquilidade:
- Eu acho que pelo fato de que certamente eu não vou gostar de minha personalidade no seu mundo Hugo,...fico pensando, se aqui eu sou desta forma que você me vê e da qual eu gosto,... como seria esta minha personalidade lá fora e revelada de maneira oposta?... talvez não seja agradável,... talvez carregue algum traço reprovável que aqui na casã não se manifeste, mas se atravessasse esta porta então ele seria inevitavelment exposto.
As mãos de Liz tocaram na maçaneta da porta e quando preparava-se para abri-la questionei-a novamente:
- Porque as pessoas fogem daqui mesmo não conhecendo a casa?...Por que as pessoas fogem só pelo fato de verem o mordomo abrir a porta?
- Porque o mordomo a que você se refere é uma pessoa conhecida desta cidade, sobretudo no que se refere a sua personalidade, e assim, qualquer um que se depare com alguém cuja imagem formada no imaginário de sua sociedade, é exatamente o oposto do que ele vê aqui quando a porta se abre, sofre inevitavelmente um estranhamento Hugo, toma um susto, uma reação de incompreensão que causa temor e os afasta da casa; pelo menos é o que tem ocorrido há vinte e oito anos até você aparecer hoje por aqui.
Fiquei em silêncio; passei pela porta pensando nas palavras daquela mulher, enquanto novamente sentia a brisa gelada da noite que atravessava o beco e invadia o recinto. Numa última olhada para Liz agradeci a cordialidade de me receber, e a coragem de me confiar tão fantástico segredo, e lhe fiz a última pergunta daquele nosso encontro apontando com o braço esquerdo para a placa localizada bem acima da porta:
- O que significam as iniciais "L.L.D."?
- São iniciais de três palavras Hugo: "Liberta-te, livra-te e descobre-te" - e tendo dito isto Liz me olhou por mais alguns instantes, enquanto era envolvido pela escuridão cada vez mais intensa do beco que retornava a medida que a porta fechava-se, transformando aquele clarão que escapava do interior da casa num facho de luz cada vez mais estreito que cortava a parede suja do lugar, até esvair-se engolido pela noite.
Comecei a caminhar para a entrada do beco procurando pelo grupo de Ricardo "boxeador", já imaginando a recompensa que havia conquistado com tamanha ousadia de minha parte. Meus passos apressaram-se enquanto me aproximava da rua procurando pelo vulto dos garotos em meio aquele lugar abandonado; então já distante, parado bem na entrada da viela no exato lugar aonde meus desafiadores haviam me observado há poucos minutos, percebi que haviam partido. Dei uma última olhada para trás e pude ver a porta da casa de Liz, agora uma pequena porta, distante, quase que imperceptível, absorvida pelo mistério e pelas sombras daquele beco, como que provocando qualquer passante que estivesse naquele trecho da cidade e contemplasse aquela insignificante porta esquecida, ainda que por apenas poucos segundos, a atravessar o beco para descobrir seu segredo. Um casal cruzou a minha frente caminhando rapidamente em direção a uma confeitaria na esquina, e o barulho de um veículo que cortava a rua me deixou novamente de costas para o beco, fazendo-me partir para minha casa.

sábado, 31 de maio de 2008

RAFAEL; "O TIRANO"; E O TREM

Pela janela da velha casa de madeira, com a pintura desbotada pelo tempo eu podia contemplar meu único vizinho, meu único amigo naquele mundo distante de todas as demais moradias da região. Ali naquela planície rasgada apenas pela estrada de ferro, estavam duas casas, duas atrevidas construções desafiando aquela geografia imutável que resistia ao tempo a ao progresso, duas famílias e dois amigos separados da civilização. Lamentava-me pelo infortúnio do destino que havia trazido para o meu amigo desde o seu primeiro dia naquela casa, uma dificuldade bem maior do que todos os meus problemas. Com a morte de seus pais e sem ter outros familiares a quem recorrer, o garoto fora admitido a força naquela família que o desprezara desde a primeira noite, quando foi obrigado a dormir no chão do depósito da casa excluído de qualquer tipo de afetividade.
O cuidado que deveria partir de seus tios sempre partia de meus pais, que nem sempre convenciam Igor, "o tirano", apelido que convenientemente lhe fora dado por minha mãe num momento de revolta, a deixar o garoto sair de casa.
Este covarde!... aposto que nem mesmo comida lhe dão!... - as palavras preocupadas de minha mãe ecoavam em minha mente, acompanhando-me durante todo o dia.
Os pequenos dedos sujos de Rafael pareciam querer arrancar as grades do seu quarto, que o mantinham na residência que sempre lhe fora muito mais uma prisão do que sua própria casa. Um aceno de mão de meu amigo num gesto secreto previamente combinado para comunicar-se, revelava-nos os dias em que Igor estava de bom humor, e que supostamente meu pai teria mais chances de êxito intercedendo junto ao homem para deixar o garoto sair. De minha casa podia escutar o recado libertador de Igor a Rafael confirmando o sucesso de meu pai na sua tentativa:
- Vai garoto!... sai logo!... mas se não demora e não me faça buscá-lo, se eu escutar alguma reclamação sua!... você já sabe!...
Certo dia enquanto comíamos alguns pães na cozinha de casa, fui surpreendido por uma declaração aparentemente inocente de Rafael:
- Alfredo,... um dia eu fujo daqui!...
Sentado de frente para meu amigo não tive tempo para responder a afirmação que me acabara de fazer, pois logo em seguida minha mãe adentrou a cozinha arrumando algumas gavetas e guardando os últimos copos na prateleira; deu um última olhada para nós, e antes de sair de casa para um evento de caridade relembrou-nos o seu velho conselho:
- Alfredo!... nada de brincar perto da estrada de ferro entendeu? fiquem longe do trem senão ele leva vocês!... entendeu Alfredo?
Tornávamos-nos sérios e adultos naquele momento transmitindo um certo temor em nossos semblantes, o que conferia a minha mãe a segurança de que suas declarações resultariam em nossa total e submissa obediência, algo que na verdade revelou-se sempre como a mais perfeita dissimulação de nossa parte para ocultar nosso verdadeiro propósito: assistir a passagem da Maria Fumaça.
O primeiro apito ainda fraco nos despertava para o esperado momento, corríamos e postavamos-nos cada um de um lado da estrada de ferro, observando ao longe o rochedo que escondia a imponente locomotiva cuja coluna de fumaça branca já podia ser vista cortando o céu. Depois do rochedo os trilhos revelavam aquela planície a visão de uma gigantesca estrutura metálica negra; a proximidade do ruídos das engrenagens e do apito ensurdecedor intimidava-nos, mas permanecíamos em nossas desafiadoras posições de espectadores. Sentíamos-nos minúsculos, pequenos, insignificantes, quando o trem passava ao nosso lado, e numa última olhada para trás, víamos ao longe o aceno do maquinista como se fosse a primeira vez em que atravessava aquelas terras.
Decerto aquela seria a lembrança mais forte de minha vida, não fosse pelo dia em que recebemos a visita de Igor e sua esposa estampando uma expressão assustadora em suas faces. Perguntado acerca do ocorrido, "o tirano" apenas estendeu a sua mão entregando a meu pai um bilhete, que depois de lido veio parar em minhas próprias mãos. Desdobrei o pedaço de papel e encontrei a seguinte mensagem numa caligrafia que me era familiar: "Sr. Igor, decidi sair definitivamente da vida de sua família, então vou correr e pular no trem. Adeus! Rafael."
Naquela manhã, diante do teor do bilhete, a trágica morte de Rafael certamente foi o primeiro pensamento que ocupou a mente dos adultos, mas não a minha; então fechei os olhos por alguns segundos e lembrei o que Rafael havia me dito na cozinha certa vez. Imaginei meu amigo correndo, saltando para dentro do vagão, e parado na porta aberta com um largo sorriso de satisfação observando as duas casas cada vez mais distantes, cada vez menores, até se tornarem pequenos pontos insignificantes na imensidão da planície, desaparecendo por completo no horizonte.

A ESCADARIA DE ANTONY KRUFTER

Durante o ano de 1875 chegou ao Brasil um jornalista conhecido como Antony Krufter. Correspondente de um dos jornais da época, Antony teve o privilégio de testemunhar um momento histórico de transição política conturbado, registrando em suas colunas um governo monárquico fragilizado e que portanto não se sustentava mais. Antony morreu em 1899 vitimado por uma tuberculose.
Em uma de nossas últimas conversas, ocorridas sempre no mesmo Café que durante toda a sua vida serviu como ponto de encontro de políticos, artistas e escritores, tive o privilégio de escutar aquela que seria sua mais incrível história relatada ainda que de maneira informal, entre um grupo de amigos que dividiam uma mesa daquele lugar descompromissadamente.
A noite começava a trazer o silêncio típico às ruas estreitas que cercavam o Café; curiosamente ao adentrar naquele lugar discreto, um esconderijo secreto cravado no centro da capital ladeado por casarões coloniais, o visitante era imediatamente transportado para o ambiente de um café parisiense do século XIX, de aspecto elegante e refinado nos seus mínimos detalhes. Sentado com mais dois amigos médicos, observávamos aquele homem alto e magro gesticulando, que disse-nos ter tido na noite anterior um estranho sonho descrevendo-nos com detalhes e do seguinte modo:
- "Meus caros amigos, imaginem vocês que na noite de ontem tive o mais estranho sonho que já me ocorreu!... encontrava-me sozinho em um longo corredor sem janelas e que não possuía saída em um dos lados, enquanto a outra extremidade apresentava uma porta fechada. Sem opção e sentindo-me já angustiado corri para a porta que para minha sorte achava-se somente encostada. Com um simples toque na maçaneta a porta deslizou vagarosamente para trás, revelando-me aos poucos um aposento muito pequeno também sem janelas e sem portas;... uma única escada em espiral no centro levava a um nível superior oculto pelo teto,... Me aproximei e qual não foi o meu espanto ao constatar,... quero dizer!... ao verificar que o piso da escada era feito de folhas de jornais!... Abaixei-me para observar com mais atenção, e pude ver inúmeras primeiras-páginas de jornais que pareciam-me de várias partes do mundo tratando do mesmo assunto, pois as fotos que acompanhavam os artigos eram as mesmas em diferentes jornais,... imaginem os Senhores!... estranhamente nenhum jornal trazia a data, e todas as línguas impressas por onde corriam meus olhos eram-me desconhecidas!!..."
O início da narrativa do jornalista foi o suficiente para silenciar definitivamente meus outros dois amigos médicos, que conversavam sobre a eficácia de um novo medicamento recém elaborado e colocado em uso nos hospitais, para combater as infecções resultantes de uma epidemia que assolava a região. O assunto obscuro e intrigante imediatamente repercutiu na mesa, e impaciente um dos corpulentos médicos, trajando um uniforme branco impecável sentado ao meu lado, interrompeu o relato de Antony pedindo-o para que ao menos nos descrevesse as fotografias; pedido que o caro jornalista atendeu de imediato:
-"Lembro-me de ter notado uma foto no primeiro degrau que me chamou a atenção, pois estampava um grupo de pessoas de semblantes cansados, cujos corpos disformes e esqueléticos permaneciam de pé enfileirados diante do fotógrafo, separados por uma cerca de arame farpado..."
- Certamente trata-se de uma visão sobrenatural e assustadora meu amigo! - afirmou o mesmo médico que lhe havia solicitado a descrição, virando cuidadosamente em seu copo uma escura garrafa de vinho que o garçom acabara de colocar na mesa.
- Concordo!... se eram esqueléticos então não pertenciam ao nosso mundo físico e sim a outro mundo desconhecido! - completou o outro ouvinte cujos óculos somados a um bigode e barba muito bem cuidados escondiam-lhe parte de suas feições, porém conferiam-lhe uma expressão de mansidão e compreensão que sempre demonstrara com os amigos. Empurrou o copo para aproveitar a generosidade do amigo que já lhe estendia a garrafa para compartilhar a bebida.
- Se eram ou não deste mundo físico não sei lhes responder amigos,... mas com certeza tratavam-se de prisioneiros, pois as pessoas trajavam o que me pareceu ser o mesmo tipo de uniforme listrado, sujo e rasgado; então respondam-me sinceramente senhores!... qual a função de uma cerca de arame farpado senão a de prender algo num espaço delimitado? - indagou o narrador.
Todos concordaram com a observação e por alguns segundos enquanto olhávamos-nos, pensativos na descrição de Antony, fez-se em nossa mesa um silêncio desolador, que só foi quebrado com o susto que tomamos causado pelo descuido de um cidadão sentado na mesa ao nosso lado, esbarrando o braço num copo de vinho que partiu-se em centenas de estilhaços quando tocou no chão, espalhando-se por baixo das outras mesas juntamente com a bebida. O homem que usava uma cartola negra e segurava uma bengala, acompanhado de uma linda mulher com um vestido preto, imediatamente levantou-se e pediu desculpas a todos os presentes, que retomaram as conversas. Neste meio tempo notei que algumas pessoas nem sequer deram conta do incidente, e só perceberam algo de diferente quando o faxineiro aproximou-se do lugar para limpar a sujeira. Então o jornalista retomou a palavra:
-"...Depois desta foto comecei a subir os primeiros degraus, e fui surpreendido um pouco mais acima por outra foto que quase pisei com meu pé esquerdo e que parecia tirada do céu..."
- Tirada do céu? Como pode suceder tal coisa?... seus devaneios não tem limite meu amigo jornalista! - disse um dos médicos levando o copo de vinho a boca para o último gole.
- "...Esta fotografia exibia uma grande coluna de fumaça que se elevava acima das nuvens, de formato semelhante a uma gigantesco cogumelo plantado no solo..." as mãos do jornalista movimentaram-se harmoniosamente no vazio, e seus dedos desenharam no ar a imagem de um cogumelo que contemplávamos absorvidos por suas palavras.
- Acho que já bebeu demais por hoje!! - afirmei com ironia observando o jornalista sentado exatamente a minha frente, que ajeitava discretamente o colarinho do seu casaco marrom, arrumando próximo a si e sobre a mesa uma pilha de livros, que carregava juntamente com um bloco de anotações, ferramenta inseparável de seu ofício que o acompanhava aonde quer que fosse.
- Esperem senhores!... analisemos também esta foto descrita por Antony!... - interrompeu novamente o médico a minha esquerda - Se ele disse ter visto uma grande coluna de fumaça então respondam-me...; o que poderia causar tal volume de fumaça?
- Um incêndio de grande magnitude!... - respondi com convicção.
- É possível,... mais alguma opinião? - dirigindo seu olhar para os outros.
- Uma explosão talvez!... - arriscou o próprio jornalista.
- Tolice!! - rebateu o médico que havia proposto a questão - Uma explosão de que?... francamente senhores!... só falta me convencerem de que uma única bomba seria o bastante para causar uma explosão deste porte!... desculpem amigos!... mas isto ultrapassa todo o limite sensatamente admitido... - a discussão estava deixando os ânimos exaltados.
- Meus amigos,... por favor,... deixemos o jornalista terminar a sua história...
Minha sugestão surtiu efeito imediato no debate que começava a se estender, pois todos silenciaram para que Antony prosseguisse com a subida pelos degraus da misteriosa escada.
- "Mais alguns passos me levaram de encontro a outra imagem!... desta vez mais surpreendente do que tudo o que já lhes contei até o momento!... inclinou-se para a mesa fitando-nos nos olhos - a fotografia mostrava o que parecia ser uma cidade futurista, composta por grandes edificações como torres que aglomeravam-se próximas umas das outras. Neste cenário dominando a paisagem urbana destacavam-se duas construções do mesmo tamanho, porém maiores do que todas as outras. O detalhe da foto mostrava uma espécie de máquina voadora,... uma grande máquina semelhante a um pássaro metálico que voava em direção a uma destas torres gigantescas, enquanto a outra parcialmente encoberta por uma espessa cortina de fumaça no topo parecia consumir-se em chamas..."
- Torres gigantes e pássaros metálicos!!... - vou escrever um livro com suas idéias Antony!... com licença amigos mas preciso retirar-me... - dizendo isto o médico sentado a minha direita empurrou a cadeira para trás e levantou-se alegando ter um compromisso inadiável que aproximava-se; despediu-se de todos cordialmente e afastou-se lamentando não poder escutar o desfecho da mórbida história. Nossos olhares acompanharam aquele médico distanciar-se, até desaparecer por completo em meio a alguns frequentadores do lugar que permaneciam de pé próximos às mesas conversando, alguns segurando uma taça de vinho ou simplesmente fumando.
- Vamos Antony!... ao contrário dele temos toda a noite para escutar sua história!... então o que aconteceu depois desta cidade, das torres e dos pássaros metálicos? - perguntou o médico que permaneceu sentado a mesa ajeitando os óculos no rosto, acendendo um charuto e soltando uma grande baforada cinzenta para o alto, ansioso para continuar ouvindo a estranha narrativa do jornalista.
- "Não houve mais nada amigos..."
O médico encarou-me espantado e em seguida questionou o jornalista:
- Como não houve nada!?... e a escada?... o que você viu depois desta foto?
- "Eu não vi mais nada porque não tive coragem de continuar a subir a escada,... estava com medo das imagens que esperavam-me adiante..."
- Você não subiu por medo?... não acredito!!... depois do seu relato acho que não vou dormir esta noite pensando na próxima fotografia!...
- "Desculpem-me se os decepcionei com o desfecho senhores,... mas depois da fotografia da cidade futurista e dos pássaros metálicos, eu desci a escada correndo e retornei ao estreito corredor..."
- E então? - perguntei
- "Então mais nada!... eu acordei meio confuso com as imagens que havia presenciado e isto é tudo de que me recordo..."
- Bem senhores!... diante de tudo o que nos foi relatado, eu lhes afirmo que certamente a espécie humana nunca chagará a tal grau de crueldade e destruição que você testemunhou em seu sonho impossível meu amigo jornalista!... afinal!... resta-nos o consolo de que tudo não passou de um sonho insano!! - proferiu efusivamente o médico, que tomando em sua mão outra garrafa de vinho que o garçom acabara de trazer a mesa, encheu nossos copos propondo o último brinde da noite, com um sorriso discreto no face.
Sentimos-nos aliviados com as últimas palavras profetizadas pelo médico; e reunidos naquela mesa com a noite avançada e poucas pessoas no Café, alheios as horas, refletimos sobre a realidade segura que nos cercava; então levantamos nosso copos de vinho e brindamos a civilização para logo em seguida partirmos.