sábado, 31 de maio de 2008

RAFAEL; "O TIRANO"; E O TREM

Pela janela da velha casa de madeira, com a pintura desbotada pelo tempo eu podia contemplar meu único vizinho, meu único amigo naquele mundo distante de todas as demais moradias da região. Ali naquela planície rasgada apenas pela estrada de ferro, estavam duas casas, duas atrevidas construções desafiando aquela geografia imutável que resistia ao tempo a ao progresso, duas famílias e dois amigos separados da civilização. Lamentava-me pelo infortúnio do destino que havia trazido para o meu amigo desde o seu primeiro dia naquela casa, uma dificuldade bem maior do que todos os meus problemas. Com a morte de seus pais e sem ter outros familiares a quem recorrer, o garoto fora admitido a força naquela família que o desprezara desde a primeira noite, quando foi obrigado a dormir no chão do depósito da casa excluído de qualquer tipo de afetividade.
O cuidado que deveria partir de seus tios sempre partia de meus pais, que nem sempre convenciam Igor, "o tirano", apelido que convenientemente lhe fora dado por minha mãe num momento de revolta, a deixar o garoto sair de casa.
Este covarde!... aposto que nem mesmo comida lhe dão!... - as palavras preocupadas de minha mãe ecoavam em minha mente, acompanhando-me durante todo o dia.
Os pequenos dedos sujos de Rafael pareciam querer arrancar as grades do seu quarto, que o mantinham na residência que sempre lhe fora muito mais uma prisão do que sua própria casa. Um aceno de mão de meu amigo num gesto secreto previamente combinado para comunicar-se, revelava-nos os dias em que Igor estava de bom humor, e que supostamente meu pai teria mais chances de êxito intercedendo junto ao homem para deixar o garoto sair. De minha casa podia escutar o recado libertador de Igor a Rafael confirmando o sucesso de meu pai na sua tentativa:
- Vai garoto!... sai logo!... mas se não demora e não me faça buscá-lo, se eu escutar alguma reclamação sua!... você já sabe!...
Certo dia enquanto comíamos alguns pães na cozinha de casa, fui surpreendido por uma declaração aparentemente inocente de Rafael:
- Alfredo,... um dia eu fujo daqui!...
Sentado de frente para meu amigo não tive tempo para responder a afirmação que me acabara de fazer, pois logo em seguida minha mãe adentrou a cozinha arrumando algumas gavetas e guardando os últimos copos na prateleira; deu um última olhada para nós, e antes de sair de casa para um evento de caridade relembrou-nos o seu velho conselho:
- Alfredo!... nada de brincar perto da estrada de ferro entendeu? fiquem longe do trem senão ele leva vocês!... entendeu Alfredo?
Tornávamos-nos sérios e adultos naquele momento transmitindo um certo temor em nossos semblantes, o que conferia a minha mãe a segurança de que suas declarações resultariam em nossa total e submissa obediência, algo que na verdade revelou-se sempre como a mais perfeita dissimulação de nossa parte para ocultar nosso verdadeiro propósito: assistir a passagem da Maria Fumaça.
O primeiro apito ainda fraco nos despertava para o esperado momento, corríamos e postavamos-nos cada um de um lado da estrada de ferro, observando ao longe o rochedo que escondia a imponente locomotiva cuja coluna de fumaça branca já podia ser vista cortando o céu. Depois do rochedo os trilhos revelavam aquela planície a visão de uma gigantesca estrutura metálica negra; a proximidade do ruídos das engrenagens e do apito ensurdecedor intimidava-nos, mas permanecíamos em nossas desafiadoras posições de espectadores. Sentíamos-nos minúsculos, pequenos, insignificantes, quando o trem passava ao nosso lado, e numa última olhada para trás, víamos ao longe o aceno do maquinista como se fosse a primeira vez em que atravessava aquelas terras.
Decerto aquela seria a lembrança mais forte de minha vida, não fosse pelo dia em que recebemos a visita de Igor e sua esposa estampando uma expressão assustadora em suas faces. Perguntado acerca do ocorrido, "o tirano" apenas estendeu a sua mão entregando a meu pai um bilhete, que depois de lido veio parar em minhas próprias mãos. Desdobrei o pedaço de papel e encontrei a seguinte mensagem numa caligrafia que me era familiar: "Sr. Igor, decidi sair definitivamente da vida de sua família, então vou correr e pular no trem. Adeus! Rafael."
Naquela manhã, diante do teor do bilhete, a trágica morte de Rafael certamente foi o primeiro pensamento que ocupou a mente dos adultos, mas não a minha; então fechei os olhos por alguns segundos e lembrei o que Rafael havia me dito na cozinha certa vez. Imaginei meu amigo correndo, saltando para dentro do vagão, e parado na porta aberta com um largo sorriso de satisfação observando as duas casas cada vez mais distantes, cada vez menores, até se tornarem pequenos pontos insignificantes na imensidão da planície, desaparecendo por completo no horizonte.

A ESCADARIA DE ANTONY KRUFTER

Durante o ano de 1875 chegou ao Brasil um jornalista conhecido como Antony Krufter. Correspondente de um dos jornais da época, Antony teve o privilégio de testemunhar um momento histórico de transição política conturbado, registrando em suas colunas um governo monárquico fragilizado e que portanto não se sustentava mais. Antony morreu em 1899 vitimado por uma tuberculose.
Em uma de nossas últimas conversas, ocorridas sempre no mesmo Café que durante toda a sua vida serviu como ponto de encontro de políticos, artistas e escritores, tive o privilégio de escutar aquela que seria sua mais incrível história relatada ainda que de maneira informal, entre um grupo de amigos que dividiam uma mesa daquele lugar descompromissadamente.
A noite começava a trazer o silêncio típico às ruas estreitas que cercavam o Café; curiosamente ao adentrar naquele lugar discreto, um esconderijo secreto cravado no centro da capital ladeado por casarões coloniais, o visitante era imediatamente transportado para o ambiente de um café parisiense do século XIX, de aspecto elegante e refinado nos seus mínimos detalhes. Sentado com mais dois amigos médicos, observávamos aquele homem alto e magro gesticulando, que disse-nos ter tido na noite anterior um estranho sonho descrevendo-nos com detalhes e do seguinte modo:
- "Meus caros amigos, imaginem vocês que na noite de ontem tive o mais estranho sonho que já me ocorreu!... encontrava-me sozinho em um longo corredor sem janelas e que não possuía saída em um dos lados, enquanto a outra extremidade apresentava uma porta fechada. Sem opção e sentindo-me já angustiado corri para a porta que para minha sorte achava-se somente encostada. Com um simples toque na maçaneta a porta deslizou vagarosamente para trás, revelando-me aos poucos um aposento muito pequeno também sem janelas e sem portas;... uma única escada em espiral no centro levava a um nível superior oculto pelo teto,... Me aproximei e qual não foi o meu espanto ao constatar,... quero dizer!... ao verificar que o piso da escada era feito de folhas de jornais!... Abaixei-me para observar com mais atenção, e pude ver inúmeras primeiras-páginas de jornais que pareciam-me de várias partes do mundo tratando do mesmo assunto, pois as fotos que acompanhavam os artigos eram as mesmas em diferentes jornais,... imaginem os Senhores!... estranhamente nenhum jornal trazia a data, e todas as línguas impressas por onde corriam meus olhos eram-me desconhecidas!!..."
O início da narrativa do jornalista foi o suficiente para silenciar definitivamente meus outros dois amigos médicos, que conversavam sobre a eficácia de um novo medicamento recém elaborado e colocado em uso nos hospitais, para combater as infecções resultantes de uma epidemia que assolava a região. O assunto obscuro e intrigante imediatamente repercutiu na mesa, e impaciente um dos corpulentos médicos, trajando um uniforme branco impecável sentado ao meu lado, interrompeu o relato de Antony pedindo-o para que ao menos nos descrevesse as fotografias; pedido que o caro jornalista atendeu de imediato:
-"Lembro-me de ter notado uma foto no primeiro degrau que me chamou a atenção, pois estampava um grupo de pessoas de semblantes cansados, cujos corpos disformes e esqueléticos permaneciam de pé enfileirados diante do fotógrafo, separados por uma cerca de arame farpado..."
- Certamente trata-se de uma visão sobrenatural e assustadora meu amigo! - afirmou o mesmo médico que lhe havia solicitado a descrição, virando cuidadosamente em seu copo uma escura garrafa de vinho que o garçom acabara de colocar na mesa.
- Concordo!... se eram esqueléticos então não pertenciam ao nosso mundo físico e sim a outro mundo desconhecido! - completou o outro ouvinte cujos óculos somados a um bigode e barba muito bem cuidados escondiam-lhe parte de suas feições, porém conferiam-lhe uma expressão de mansidão e compreensão que sempre demonstrara com os amigos. Empurrou o copo para aproveitar a generosidade do amigo que já lhe estendia a garrafa para compartilhar a bebida.
- Se eram ou não deste mundo físico não sei lhes responder amigos,... mas com certeza tratavam-se de prisioneiros, pois as pessoas trajavam o que me pareceu ser o mesmo tipo de uniforme listrado, sujo e rasgado; então respondam-me sinceramente senhores!... qual a função de uma cerca de arame farpado senão a de prender algo num espaço delimitado? - indagou o narrador.
Todos concordaram com a observação e por alguns segundos enquanto olhávamos-nos, pensativos na descrição de Antony, fez-se em nossa mesa um silêncio desolador, que só foi quebrado com o susto que tomamos causado pelo descuido de um cidadão sentado na mesa ao nosso lado, esbarrando o braço num copo de vinho que partiu-se em centenas de estilhaços quando tocou no chão, espalhando-se por baixo das outras mesas juntamente com a bebida. O homem que usava uma cartola negra e segurava uma bengala, acompanhado de uma linda mulher com um vestido preto, imediatamente levantou-se e pediu desculpas a todos os presentes, que retomaram as conversas. Neste meio tempo notei que algumas pessoas nem sequer deram conta do incidente, e só perceberam algo de diferente quando o faxineiro aproximou-se do lugar para limpar a sujeira. Então o jornalista retomou a palavra:
-"...Depois desta foto comecei a subir os primeiros degraus, e fui surpreendido um pouco mais acima por outra foto que quase pisei com meu pé esquerdo e que parecia tirada do céu..."
- Tirada do céu? Como pode suceder tal coisa?... seus devaneios não tem limite meu amigo jornalista! - disse um dos médicos levando o copo de vinho a boca para o último gole.
- "...Esta fotografia exibia uma grande coluna de fumaça que se elevava acima das nuvens, de formato semelhante a uma gigantesco cogumelo plantado no solo..." as mãos do jornalista movimentaram-se harmoniosamente no vazio, e seus dedos desenharam no ar a imagem de um cogumelo que contemplávamos absorvidos por suas palavras.
- Acho que já bebeu demais por hoje!! - afirmei com ironia observando o jornalista sentado exatamente a minha frente, que ajeitava discretamente o colarinho do seu casaco marrom, arrumando próximo a si e sobre a mesa uma pilha de livros, que carregava juntamente com um bloco de anotações, ferramenta inseparável de seu ofício que o acompanhava aonde quer que fosse.
- Esperem senhores!... analisemos também esta foto descrita por Antony!... - interrompeu novamente o médico a minha esquerda - Se ele disse ter visto uma grande coluna de fumaça então respondam-me...; o que poderia causar tal volume de fumaça?
- Um incêndio de grande magnitude!... - respondi com convicção.
- É possível,... mais alguma opinião? - dirigindo seu olhar para os outros.
- Uma explosão talvez!... - arriscou o próprio jornalista.
- Tolice!! - rebateu o médico que havia proposto a questão - Uma explosão de que?... francamente senhores!... só falta me convencerem de que uma única bomba seria o bastante para causar uma explosão deste porte!... desculpem amigos!... mas isto ultrapassa todo o limite sensatamente admitido... - a discussão estava deixando os ânimos exaltados.
- Meus amigos,... por favor,... deixemos o jornalista terminar a sua história...
Minha sugestão surtiu efeito imediato no debate que começava a se estender, pois todos silenciaram para que Antony prosseguisse com a subida pelos degraus da misteriosa escada.
- "Mais alguns passos me levaram de encontro a outra imagem!... desta vez mais surpreendente do que tudo o que já lhes contei até o momento!... inclinou-se para a mesa fitando-nos nos olhos - a fotografia mostrava o que parecia ser uma cidade futurista, composta por grandes edificações como torres que aglomeravam-se próximas umas das outras. Neste cenário dominando a paisagem urbana destacavam-se duas construções do mesmo tamanho, porém maiores do que todas as outras. O detalhe da foto mostrava uma espécie de máquina voadora,... uma grande máquina semelhante a um pássaro metálico que voava em direção a uma destas torres gigantescas, enquanto a outra parcialmente encoberta por uma espessa cortina de fumaça no topo parecia consumir-se em chamas..."
- Torres gigantes e pássaros metálicos!!... - vou escrever um livro com suas idéias Antony!... com licença amigos mas preciso retirar-me... - dizendo isto o médico sentado a minha direita empurrou a cadeira para trás e levantou-se alegando ter um compromisso inadiável que aproximava-se; despediu-se de todos cordialmente e afastou-se lamentando não poder escutar o desfecho da mórbida história. Nossos olhares acompanharam aquele médico distanciar-se, até desaparecer por completo em meio a alguns frequentadores do lugar que permaneciam de pé próximos às mesas conversando, alguns segurando uma taça de vinho ou simplesmente fumando.
- Vamos Antony!... ao contrário dele temos toda a noite para escutar sua história!... então o que aconteceu depois desta cidade, das torres e dos pássaros metálicos? - perguntou o médico que permaneceu sentado a mesa ajeitando os óculos no rosto, acendendo um charuto e soltando uma grande baforada cinzenta para o alto, ansioso para continuar ouvindo a estranha narrativa do jornalista.
- "Não houve mais nada amigos..."
O médico encarou-me espantado e em seguida questionou o jornalista:
- Como não houve nada!?... e a escada?... o que você viu depois desta foto?
- "Eu não vi mais nada porque não tive coragem de continuar a subir a escada,... estava com medo das imagens que esperavam-me adiante..."
- Você não subiu por medo?... não acredito!!... depois do seu relato acho que não vou dormir esta noite pensando na próxima fotografia!...
- "Desculpem-me se os decepcionei com o desfecho senhores,... mas depois da fotografia da cidade futurista e dos pássaros metálicos, eu desci a escada correndo e retornei ao estreito corredor..."
- E então? - perguntei
- "Então mais nada!... eu acordei meio confuso com as imagens que havia presenciado e isto é tudo de que me recordo..."
- Bem senhores!... diante de tudo o que nos foi relatado, eu lhes afirmo que certamente a espécie humana nunca chagará a tal grau de crueldade e destruição que você testemunhou em seu sonho impossível meu amigo jornalista!... afinal!... resta-nos o consolo de que tudo não passou de um sonho insano!! - proferiu efusivamente o médico, que tomando em sua mão outra garrafa de vinho que o garçom acabara de trazer a mesa, encheu nossos copos propondo o último brinde da noite, com um sorriso discreto no face.
Sentimos-nos aliviados com as últimas palavras profetizadas pelo médico; e reunidos naquela mesa com a noite avançada e poucas pessoas no Café, alheios as horas, refletimos sobre a realidade segura que nos cercava; então levantamos nosso copos de vinho e brindamos a civilização para logo em seguida partirmos.