sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

A CHAVE DE LYON


"Algumas lembranças jamais serão esquecidas". Foi assim que Joana Margot começou as anotações em seu diário, na página datada de 31 de Março de 1570.

- O Sr. gostaria de utilizar a sala reservada que dispomos para os clientes? - a desconhecida voz desviou minha atenção do diário, denunciando que uma mulher permanecia dentro da sala do cofre, repleta de gavetas numeradas em todas as paredes.
- Ah sim, eu gostaria se fosse possível, por favor!
A funcionária vestia um uniforme azul marinho com o emblema do banco. Possuia o cabelo negro preso, e me observava por trás do óculos prateado; em seguida gesticulou para que eu a seguisse. Atravessamos um corredor estreito iluminado e caminhamos até a última porta. Retirou uma chave do bolso destrancando-a, e antes de se retirar avisou-me esboçando um sorriso:
- Fique a vontade Sr. Giorki, poderá utilizar a sala durante o horário de funcionamento da agência.
- Obrigado
- Um funcionário virá avisá-lo quando encerrarmos o expediente. - dizendo isto atravessou o corredor novamente, e subiu as escadas deixando-me sozinho, naquele subsolo cercado de portas de aço e câmeras de segurança.
Encostei a porta e coloquei a gaveta metálica que trazia comigo, sobre a única mesa que ocupava o centro da pequena sala. Naquele espaço secreto não haviam janelas, e nem câmeras de segurança. Uma atmosfera opressora e claustrofóbica começou a invadir-me, enquanto observava aquele ambiente cuja única saída era a porta de aço. Sentei-me e contemplei por alguns segundos a gaveta que tinha a minha frente, recordando a frase que acabara de ler:
"Algumas lembranças jamais serão esquecidas". Trazia na parte da frente, logo acima da fechadura o número 035. Retirei a tampa e reencontrei no interior da gaveta o diário de Joana Margot. Comecei a folhear o caderno observando o canto superior das páginas, até encontrar a folha que continha a data de 31 de Março de 1570. Na linha logo abaixo reli na caligrafia meio apagada pelo tempo, a sentença que aparecia como o título de suas anotações naquele dia, "Algumas lembranças jamais serão esquecidas" e o que seguia:

"Finalmente consegui adentrar nos aposentos de Ivan IV, utilizando-me de subterfúgios que não me vem ao caso especificar agora. Mas gostaria de registar que hoje atravessei certamente o momento mais assutador de minha vida, ficando a mercê deste monstro que governa nossa nação. Em cada segundo em que estive naquele lugar, me assolava o pavor de ser surpreendida pelo retorno de Ivan, o que me custaria a vida. Os instantes em que fiquei dentro do quarto do czar, revelaram-me a opulência da realeza, na riqueza do ouro e nas jóias dos objetos e detalhes presentes naquele espaço. Utilizei cada segundo procurando a antiga chave negra, conforme as recomendações informadas pelo Abade banido . As cortinas de seda cuidadosamente arrumadas, os cristais, as louças e as pedras que brilhavam para onde quer que eu olhasse, desviavam inevitavelmente o foco de minha atenção, enquanto procurava pela pequena chave de Lyon. Tenho na minha lembrança a imagem daquele quarto real, algo que jamais esquecerei. No entanto o temor aumentava com o decorrer do tempo, as vezes permanecia imóvel ao som do menor ruído externo, antecipando nos pensamentos minha sentença de morte. Mas eu a encontrei debaixo da cama, ao descobrir um esconderijo muito bem disfarçado no piso. Neste exato momento tenho a chave de Lyon em minhas mãos, e estou aguardando a chegada do Abade que me revelará o que faremos".

Meu telefone cel
ular tocou, despertando-me do relato de Joana Margot:
- E então? - pronunciou uma voz rápida do outro lado da linha.
- Ainda não descobri Sr.
- Depressa Giorki! eles podem chegar a qualquer momento!
- Estou lendo as anotações de Joana.
- Ela esteve mesmo nos aposentos reais?
- Esteve sim.
- Prossiga, eu volto a ligar.
O silêncio dominou novamente aquele recinto. Coloquei o telefone celular sobre a mesa, tomei o diário de Joana nas mãos virando a página, e continuei lendo-o:

4 de Abril de 1570. - 3 da tarde

"Hoje já não restam mais dúvidas de que fui descoberta, e de que estou prestes a cair nas mãos de Ivan. Tenho esta certeza, pois fui alertada por pessoas de minha estrita confiança, acerca de conversas envolvendo meu nome, travadas nos últimos dias entre Ivan e o conselho Real. Tentarei fugir esta noite de Moscou, mas temo que o meu nome já esteja sendo cogitado e caçado pelos oprichiniks. Ainda tenho por registrar aqui o segredo da chave de Lyon, que me fora revelado pelo Abade enqu!... alguém bate a porta...".

4 de Abril de 1570. - 7 da noite

"Para minha alegria o inesperado visitante era o Abade banido, trazendo-me o plano de fuga que empreenderei ainda esta noite. Cada segundo é valioso. Ele confirmou meus temores de que agora sou uma foragida do czar. Meu pensamentos estão confusos e sinto meu destino perdendo-se, pois desconheço para aonde vou; medida adotada para minha própria segurança segundo as palavras do Abade. Terei que interromper estas linhas, pois uma carruagem me aguarda do lado de fora".

5 de Abril de 1570.

"Depois de viajar durante toda a noite rumando em direção ao norte, o cocheiro me levou a uma propriedade rural, pertencente a uma família de camponeses do círculo de confiança do Abade, onde deverei permanecer escondida. Garantiu-me o bom homem que estarei temporariamente protegida dos temidos cavaleiros negros. Receberam-me com grande hospitalidade e cuidado, pelo qual sou eternamente grata. Realmente não sei o que me teria acontecido se tivesse permanecido em Moscou. A mão de ferro esmagadora de Ivan caiu sobre a população Russa, sujeita aos seus caprichos de lunático. Corre o boato de que o czar elimina pessoalmente, todos os que são considerados seus opositores. Por decisão do Abade e dada a incerteza de sua segurança, ainda manterei a chave de Lyon sob meus cuidados por alguns dias".


8 de Abril de 1570.

"Esta certamente constitui a anotação mais importante que terei feito em vida. Adiei pelo máximo de tempo estas palavras, em virtude do temor de que caiam em mãos erradas, e de que o segredo da chave de Lyon seja utilizado para prejudicar outros, como tinha sido feito até então. Mas felizmente Ivan já não a possui mais, e sinto-me agraciada por ter impedido tal homem de prosseguir com o seu sanguinário intento. Estou em paz comigo por não ter falhado com a organização. Acredito que no futuro a história ocultará esta parte dos fatos, por considerá-los tão inacreditáveis, pois certamente seriam tomados por qualquer indivíduo com sarcasmo e ironia. Mas asseguro que arrisquei minha vida por algo extremamente perigoso e real. Não existem informações precisas sobre a origem da chave de Lyon. Os relatos mais remotos afirmam que o objeto, foi encontrado por um Abade no séc. XIII na fronteira leste da Livônia, e levado por ele até um monastério nas proximidades de Moscou. Assim esta comunidade reclusa passou a estudar a misteriosa chave secretamente. Durante muitos anos o assunto não despertou a atenção, chegando a cair no esquecimento; porém em 1492 uma série de desaparecimentos inexplicáveis de monges agitou toda a comunidade local. As autoridades enviadas não encontraram qualquer pista do paradeiro dos monges, e nenhum corpo que evidenciasse um crime. Interrogando os outros reclusos descobriram um dado estranho e curioso: todos os desaparecidos haviam estudado e manuseado pessoalmente a chave de Lyon. Por uma questão de segurança o objeto foi transferido para o palácio real em Moscou, onde permaneceu até reinado de Ivan, mesmo sob o protesto dos monges que reclamaram o retorno da chave de Lyon para o monastério. Assim que assumiu o poder Ivan ameaçou destruir o monastério, e eliminar qualquer um que tocasse no assunto da chave, mas não conseguiu calar o mentecapto jardineiro, que após os desaparecimentos atravessava os jardins do lugar gritando uma única frase:
- Ele fechou a porta e sumiu!! Ele fechou a porta e sumiu!! Ele fechou a porta e sumiu!! Ele fechou a porta e sumiu!!...- e assim permaneceu o resto de seus dias pronunciando as mesmas palavras, sem imaginar que proclamava involuntariamente a elucidação dos desaparecimentos, até ser morto numa noite pelos cavaleiros negros de Ivan.
Por que Ivan não devolveu a chave ao monastério? Por que ameaçou a todos que tocassem no assunto? Por que os guardas mataram o inofensivo jardineiro? Pensando em tudo isto, não tenho mais dúvidas de que Ivan descobriu algo extraordinário, por trás daquele insignificante objeto; e minhas suspeitas se confirmaram quando conheci o Abade banido, que revelou-me possuir a chave poderes inacreditáveis, capazes de conduzir seu portador de um espaço físico a qualquer outro imaginável, num abrir e fechar de portas. Segundo ele, com a porta fechada, bastava colocar a chave de Lyon na fechadura, imaginar um espaço de tempo preciso que incluísse um determinado dia, lugar e hora, e assim quando a porta se abrisse ao invés de ter diante de si o espaço adjacente que habitualmente encontraria, como por exemplo um corredor, ou outro quarto, estaria o portador da chave diante do local imaginado. Tomada de tamanho assombro, tornei-me a mais cética mulher diante da revelação, mas ao refletir mais cuidadosamente sobre os acontecimentos políticos recentes, envolvendo pessoas importantes cercadas por um rígido aparato de segurança, comecei a considerar possíveis as palavras do Abade banido. Isso explicava os assassinatos de todas as autoridades que ameaçavam o czar. Figuras políticas importantes que residiam em palacios fortificados e possuiam guardas pessoais, amanheciam mortas em seus aposentos com as portas trancadas pelo lado dentro sem nenhuma explicação; soldados bem armados com cães patrulhavam todo o perímetro em vão, e afirmavam categoricamente que durante toda noite ninguém havia atravessado os portões dos palácios. De fato ninguém havia atravessado mesmo! Se a relevação do Abade fosse verdadeira, então Ivan estava utilizando a chave para surpreender seus inimigos, vulneráveis durante a noite em seus aposentos. Bastava ao tirano colocar a chave de Lyon em qualquer porta de seu palácio em Moscou, e abri-la para deparar-se com os aposentos pessoais de seus desafetos. Depois de matá-los recolocava a chave no outro lado da porta e retornava para seus aposentos reais. E foi assim que a organização da qual fazia parte juntamente com o Abade banido, elabourou um plano para roubarmos a chave de Lyon do palácio de Ivan, aproveitando uma cerimônia oficial que aconteceu na noite do dia 31 de Março, quando me infiltrei em seus aposentos disfarçada de serviçal".

18 de Abril de 1570.

"É com imenso pesar que redijo estas linhas, na certeza de que serão as últimas deste diário. Atrevo-me a ocupar este espaço pessoal de minha querida amiga neste momento de luto, por quem devotava as mais profundas e sinceras estimas, para registrar neste papel mais uma vilania deste tirano. Infelizmente o motivo que me leva a fazê-lo é por demais triste, pois minhas tentativas de proteger Joana Margot fracassaram. Soube que na noite de ontém os oprichiniks surpreenderam-na na propriedade na qual se escondia, matando-a bem como a seus protetores, mas não obtiveram sucesso na busca pela chave de Lyon, que já havia sido escondida por Joana. Assim creio que a chave de Lyon bem como seu segredo, estão defitivamente enterrados e longe de homens como Ivan, o que de certa forma me conforta. Lamento profundamente que Joana tenho sida sacrificada para proteger o segredo da chave. Estou desconsolado e sem palav..."


O barulho estridente do telefone celular interrompeu minha leitura, seduzido pelo relato de Joana Margot e do Abade banido, trazendo-me novamente à realidade. Aproximei o telefone do ouvido, e escutei a mesma voz gritando com apreensão:
- Giorki! saia daí agora! Eles chegaram! Saia daí Giorki! Estão entrando na agência. Saia!!

Um grupo de aproximadamente doze homens trajando ternos, e empunhando pistolas automáticas desceu de três veículo que pararam defronte a agência bancária. Em poucos segundos adentraram no prédio a passos rápidos, identificando-se como agentes do serviço de inteligência. Em seguida começaram a interrogar todos os funcionários mostrando-lhes algumas fotos, e questionando se alguém conhecia ou tinha visto o rosto impresso: um misteriosos homem de cabelos loiros, cortados num estilo militar, com a barba feita e de olhar sério. Uma funcionária levantou a mão apontando para as escadas de acesso ao subsolo dizendo:
- Eu conheço este homem, ele se chama Giorki Yelik e está na sala dos cofres.
Os agentes correram em direção as escadas acompanhados por alguns funcionários do banco.

Desliguei o telefone celular e recoloquei o diário na gaveta metálica, enquanto ouvia os passos apressados do agentes sob minha cabeça, no andar de cima do prédio. Retirei um isqueiro do bolso da calça, e o aproximei do caderno de anotações de Joana Margot. Os homens desciam apressadamente as escadas. Apertei o botão e uma pequena chama apareceu alastrando-se por uma folha de papel, aumentando e consumindo as outras folhas vagarosamente. Os passos tornavam-se mais altos, os homens aproximavam-se do corredor que terminava na sala onde me encontrava.
- Sr. Giorki!! Sr. Giorki!! saia agora!! somos do serviço de inteligência! saia com as mãos para cima!- gritava o agente que vinha a frente quase chegando a porta da saleta.
Coloquei a mão no bolso do casaco e retirei uma pequena chave, a tinta negra confundia-se com a ferrugem do metal, denunciando a antiguidade daquela peça. Encaixei-a no buraco da fechadura e depois de poucos segundos abri a porta...

Quando o agente chegou a sala com seus homens, encontrou-a com a porta aberta, e a fumaça começando a espalhar-se pelo corredor. Com um lenço protegendo o nariz, permaneceu parado observando da entrada um pequeno caderno de anotações, que queimava sobre a mesa dentro da gaveta metálica. As chamas consumiam rapidamente o papel, desprendendo alguns pedaços de cinzas incandescentes que flutuavam no ar. A fumaça encheu a sala tornando o ambiente difícil de respirar; até que um funcionário abriu espaço entre os homens, trazendo uma toalha encharcada em água, que lançou sobre a mesa cobrindo toda a superfície. Aos poucos a fumaça começou a se dissipar.
Depois de alguns minutos os agentes entraram na sala para investigar aquele cenário. Quando um dos homens retirou a toalha que cobria a mesa, encontrou apenas um punhado de cinzas negras que desmancharam-se com o movimento do tecido, espalhando-se pelo ar e sujando ainda mais o ambiente. O único resquício ainda legível do diário de Joana Margot, repousava no canto do piso da pequena sala; um folha que havia queimado inicialmente nos encaixes do papel, desprendendo-o do caderno e lançando-o ao chão. Um dos investigadores observou o papel que não trazia nada escrito num dos lados, então apanhou a folha e virando-a encontrou o seguinte texto parcialmente legível:

14 de Abril de 1570.

"Encontro-me confortável e segura nesta casa. Tratam-me com tamanho apreço que sinto-me constrangida diante de meus protetores. Sou visitada regularmente pelo Abade banido, que planeja em breve tirar-me deste lugar. Na visita de ontém disse-me ter conhecido um misterioso aliado que deseja encontrar-me pessoalmente, e que o convenceu de que a minha permanência neste lugar, representa um risco iminente à minha vida. Alegou incansavelmente que devo deixar esta casa dentro de dois dias, e que não estou protegida da guarda pessoal de Ivan, que planeja atacar-nos tendo conhecimento de meu esconderijo. As palavras deste homem que se apresentou como Giorki Yelik impressionaram o Abade, pois tal homem demonstrou ter conhecimento de toda a história da chave de Lyon, bem como de meu paradeiro nos últimos dias, o que me deu a impressão de estar sendo discretamente seguida por este estranho sem perceber. Sendo assim o Abade resolveu dar crédito as palavras do Sr. Giorki, e aguardo ansioamente a sua visita que chegará a qualquer momento, acompanhado por este misterioso homem que deseja enc..."

(Neste ponto termina o relato de Joana Margot interrompido pelas chamas, na única página que restou de seu diário, e que hoje repousa no Museu Nacional de História, na Praça Vermelha em Moscou).

sábado, 21 de novembro de 2009

O SELO DO LIVREIRO ANTIGO


Quando me perguntam quem foi a personalidade mais intrigante que conheci ao longo de minha vida, respondo sem pestanejar: Pedro Batista Finemore. Filho de agricultores que viviam na Itália, migrou para o Brasil durante a Segunda Grande Guerra trazendo apenas duas malas na viagem. Finemore passou parte da infância em meio aos vinhedos da região de Perugia, mas fora agraciado por uma boa educação que o manteve em Roma dos 15 aos 23 anos. Jamais se esqueceu das palavras do pai no porto de Nápoles, no dia de sua vinda para o Brasil. Deixava seu País para assumir um negócio herdado por ocasião da morte do avô, uma pequena livraria na cidade do Rio de Janeiro. O homem com o semblante queimado pelo sol, a barba por fazer, e a roupa um pouco suja de terra abraçou o filho e disse:
- Cuide da livraria do velho Giuseppe filho, e jamais venda o livro com o selo do livreiro antigo.
- Selo do livreiro antigo? Que livro é este? - Pedro Finemore não teve tempo para ouvir as explicações do pai, que lhe entregou a cópia da chave da livraria, quando o apito do navio soou anunciando a partida em poucos minutos.
- Não se preocupe com isto filho, seu avô deixou recomendações detalhadas explicando tudo. Agora vá!
Abraçou o pai e desapareceu no meio da multidão, que aglomerava-se numa passarela de acesso que conduzia ao convés do navio. Com 38 anos de idade Pedro Finemore partiu de sua terra natal, sem imaginar que jamais retornaria à Itália. O navio atravessou o Atlântico em 27 dias carregando imigrantes irlandeses, portugueses e italianos, que dividiam espaço com as bagagens em cabines desconfortáveis de terceira classe.
Quase um mês depois de deixar a Itália, Pedro Batista Finemore caminhava pelas ruas do Rio de Janeiro, procurando o número 32 da travessa Fabrício de Souza Alvarez, que terminava na entrada de um depósito de tecidos, de uma tecelagem conhecida da cidade. Os passos diminuíram conforme aproximava-se do fim da estreita rua, e a poucos metros do depósito pode reconhecer uma porta de ferro trancada com um cadeado prateado; acima da porta havia uma placa antiga de madeira, cujo título em inglês e a imagem envelhecida de uma caneta de pena e um tinteiro, denunciavam tratar-se da livraria do avô. Destrancou o cadeado e empurrou a porta permitindo que a luz invadisse timidamente o lugar.
Durante quarenta e oito dias a livraria do velho Giuseppe permaneceu fechada, até a chegada do neto ao Rio de Janeiro. Acometido por um mal estar súbito, o homem de baixa estatura, cabelos brancos e com 67 anos, mal teve tempo de chegar ao hospital público do bairro, deixando o estabelecimento no Brasil sem herdeiros; e fazendo com que um dos seus clientes, um engenheiro inglês que mudara para o Rio de Janeiro, contactasse a embaixada italiana da cidade para que a família fosse informada do acontecido. Assim a livraria havia sido lacrada pelas autoridades, até que um membro designado pela famílía viesse ao Brasil para assumir o negócio.
Parado em pé na porta de entrada da livraria, Pedro Finemore observava o lugar repleto de estantes enfileiradas contendo os mais diversos títulos. Adentrou o local e atravessou vagarosamente o recinto pelo corredor central: o único espaço livre deixado pelas estantes de livros, observando ao fundo o balcão de atendimento, que havia sido ocupado pelo avô durante trinta e um anos. Acima da mesa e ao lado da máquina registradora havia um caderno negro fechado, com uma caneta descansando sobre a capa. Enquanto caminhava em direção ao balcão notou que cada estante trazia livros de um determinado assunto; logo que atravessou a porta deparou-se à sua esquerda com títulos acerca de antropologia e teorias evolucionistas, mais alguns passos e deixou para trás uma coleção de enciclopédias Jurídicas. Finalmente quando aproximou-se do balcão, pode ver que a última estante guardava livros de literatura estrangeira. Grande parte dos livros estava impresso em inglês, uma vez que a clientela era composta em sua maioria por imigrantes ingleses; deduziu então que isto explicava também o título em inglês, colocado na placa sobre a porta de entrada do estabelecimento.
Quando Pedro Finemore puxou a cortina da janela atrás do balcão, a luz daquela manhã de terça-feira invadiu o lugar, revelando a livraria em todos os seus detalhes. O avô havia reunido uma quantidade considerada de livros, jornais e revistas. O corredor central dividia o ambiente com oito estantes de cada lado. De um lado livros e coleções de diversos tamanhos agrupavam-se separados por assunto. De outro, jornais e revistas nacionais e estrangeiras estavam expostas nas estantes, também separados pelo assunto que tratavam. O tema da Segunda Guerra ainda estampava as páginas de muitos jornais e revistas da época. Abriu o caderno negro sob o balcão, e descobriu tratar-se do livro de contabilidade do estabelecimento. Suas mãos folheavam as páginas que traziam detalhadamente, toda movimentação financeira controlada pelo avô, além dos nomes dos clientes organizados pela preferência de leitura, endereço para contato e os débitos pendentes para com a livraria. Pedro Finemore folheou as páginas até chegar exatamente no meio do caderno, onde encontrou uma pequena chave sem nenhuma referência. Havia uma única gaveta embaixo do balcão, e instintivamente o homem colocou a chave, girando-a para ter a confirmação de suas suspeitas. A gaveta destrancou e revelou para o homem três folhas de caderno grampeadas e dobradas, que traziam o seguinte título grifado e escrito na caligrafia do avô: INSTRUÇÕES SOBRE O LIVRO COM O SELO DO LIVREIRO ANTIGO.
Retirou os papéis do fundo da gaveta, desdobrou a primeira folha e leu a seguinte mensagem: "Pedro meu neto, se estiver lendo esta mensagem agora, concluo que minhas recomendações para com seu pai por ocasião de minha morte, foram estritamente cumpridas, para que a livraria prossiga funcionando de maneira segura em suas mãos. Sinto-me aliviado por saber que meu negócio esta sob sua responsabilidade, no entanto esta mensagem faz-se necessário, pois devo colocá-lo a par da seriedade de sua responsabilidade. Eu lhe asseguro que esta livraria não é uma livraria comum, ela guarda segredos que devem ser mantidos, e que agora lhe serão revelados. Antes de abrir uma livraria no Brasil adquiri alguns livros de um excêntrico colecionador húngaro; foi um bom investimento na época, consegui obter coleções raras e valiosas que deram início ao meu negócio. Na verdade revendi os livros aquiridos para obter o capital necessário para abrir esta livraria. Lembro-me também que aquele homem de poucas palavras fez-me um pedido: que eu jamais revendesse o livro com o selo do livreiro antigo. Eu segui as recomendações do colecionador húngaro, e refaço a você o mesmo pedido que me foi feito naquela ocasião: que nunca revenda tal livro. Você não vai encontrá-lo nas estantes. Tomei o cuidado de guardá-lo no cofre localizado no depósito do porão da livraria".
Quando as mãos de Pedro Finemore, retiraram o livro verde de capa dura do interior do cofre, percebeu que a capa trazia a mesma ilustração, contida na placa sobre a porta de entrada da livraria: o desenho da caneta de pena no tinteiro, destacava-se no fundo escuro da capa do livro. Pedro Finemore continuava segurando a mensagem do avô na outra mão, e incomodado com o mistério prosseguiu lendo: "Eu quero que saiba que o conteúdo deste livro é diferente de tudo o que já leu, e se usado indevidamente poderá tornar-se perigoso. Por mais absurdas que pareçam minha palavras, eu lhe asseguro que este livro jamais dever ser emprestado ou negociado como um livro comum; o mantenha sempre guardado no cofre e distante dos clientes. No entando existem pessoas que tem acesso ao livro, e que irão procurá-lo em breve, tomei o cuidado de fazer uma lista que também guardei no cofre com os nomes destes clientes. Somente nestes casos você deverá emprestar o livro, para que seja consultado na sala reservada do depósito da livraria e nunca em outro lugar. Imagino que neste exato momento, deve estar se indagando acerca do segredo do livro com o selo do livreiro antigo. Receio que não acreditará em minhas palavras, sendo assim vou demostrar tal segredo na prática, mas primeiro feche toda a livraria e va até a sala reservada do depósito."
Pedro Finemore seguiu as recomendações do avô, e depois de fechar a livraria desceu a escada dos fundos até o pequeno depósito no porão. Duas cadeiras de frente uma para a outra, e uma mesa no centro ocupavam quase todo o espaço da sala, iluminada por uma forte lâmpada que descia do teto, ficando a uma altura de aproximadamente 50 centímetros da mesa. Pedro Finemore sentou-se a mesa, e notou que o único objeto presente sobre o tampo escurecido era um relógio despertador vermelho. Seus olhos retornaram para o relato do avô: " O livro com o selo do livreiro antigo, nada mais é do que um coletânea de contos escritos por um desconhecido. Não se sabe há quanto tempo o livro existe, mas sabe-se que as narrativas contidas foram traduzidas em diversos idiomas, espalhando-se pelo mundo. A placa colocada sobre a porta de entrada da livraria, funciona como uma espécie de código entre os livreiros de todo mundo, para indentificar os lugares onde tal livro pode ser encontrado; portanto você certamente já deve ter visto a mesma placa em alguma livraria de Roma. Permita-me voltar ao livro; no interior do livro você encontrará cinco contos aparentemente inocentes. Mas eu lhe advirto, nunca os leia fora desta sala e antes de ajustar o relógio despertador, estes cuidados são estritamente necessários para que você retorne meu neto. Os contos tem o poder de transportar o leitor para dentro da história Pedro, tornando-os personagens reais inseridos na narrativa. Estou lhe dizendo que qualquer pessoa que ler estes contos, torna-se imediatamente personagem da história, e a única forma de trazê-la de novo à realidade, é com o barulho do despertador vermelho que esta sobre a mesa. Este misterioso objeto me foi entregue junto com o livro com o selo do livreiro antigo, no dia em que o negociei com o colecionador húngaro.
Estou finalizando minhas linhas porque você certamente deve estar me considerando um lunático; eu não o culpo por isto, acredite Pedro, já estive em seu lugar, fechado nesta sala com o livro em minhas mãos, e uma única vez fiz o que você esta prestes a fazer. Meu pedido agora é que você abra o livro, escolha um dos contos e o leia, mas antes coloque o relógio despertador para acordá-lo dentro de 3 ou 4 minutos. Mais um aviso: Não retome a leitura depois que for alertado pelo relógio despertador, e se o fizer, nunca esqueça de ajustar novamente o relógio antes de recomeçar a ler o livro. Eu sei que minhas palavras lhe soam como loucura, mas eu lhe peço encarecidamente como meu último pedido que o faça desta forma, ainda que tudo lhe pareça um capricho infundado de um velho louco.
Com toda estima que lhe dedico.
Giuseppe Valencio Finemore"

Pedro Batista Finemore sentia-se dominado por um temor desconhecido, quando terminou de ler as palavras do avô. Uma confusão de pensamentos transitava por sua mente, enquanto permaneceu imóvel por alguns segundos sentado à cadeira, e com os braços sobre a mesa; entre eles repousava o misterioso livro que permanecia fechado, mas despertava cada vez mais sua curiosidade. Seus olhos detiveram-se no relógio despertador vermelho que parecia funcionar normalmente. No silêncio daquele momento podia-se ouvir os ponteiros do relógio avançarem com precisão. Lembrou-se das palavras do avô, alertando-o para os procedimentos que deveria tomar antes de abrir o livro. Sentia-se inseguro cercado por uma história impossível, contada por um homem que era conhecido pela seriedade. Seu pai já lhe descrevera o avô como o tipo de pessoa de poucas brincadeiras. Isto o levou a refletir por mais um tempo. Finalmente pegou o relógio despertador, e manuseou o mecanismo de disparo para alertá-lo dentro de 4 minutos, devolvendo-o ao centro da mesa. Pousou os olhos sobre o livro cuja capa não tinha título, mas apenas o desenho conhecido da caneta e do tinteiro, e virou a primeira página encontrando um índice com cinco títulos ordenados da seguinte forma:

I - Memórias de um explorador da Transilvânia.
II - Os últimos momentos de um músico a bordo do Titanic.
III - Relato do cerco de meu exército grego pelos bárbaros.
IV - Desafios de um alpinista alemão no Himalaia.
V - O visitante inesperado e os livros do futuro.

Pedro Finemore escolheu o último conto, e avançou rapidamente as páginas do livro até encontrar o título "O visitante inesperado e os livros do futuro", ocupando com letras grandes e sozinho o centro da folha. Virou mais uma página e começou a leitura da seguinte história:
"O caso mais intrigante que já investiguei em toda a minha carreira de detetive, foi o do misterioso visitante, que apareceu diante de inúmeras pessoas em várias cidades do mundo. As investigações foram insubstanciais, e tudo o que se conhecia eram pistas deixadas pelo próprio visitante em mensagens escritas, informando que agiria quando os livros convencionais fossem substituídos pelos livros do futuro. Mais tarde descobrimos que os livros do futuro, tratavam-se de máquinas que passarariam a fazer parte do cotidiano das pessoas. Cada vez mais estas máquinas ocupavam os locais de trabalho, estabelecimentos comerciais, e a própria residência dos indivíduos, que conseguiam diante de uma tela assistir as imagens de maneira semelhante à televisão; mas conseguiam também escrever, comunicar-se, enfim, realizar inúmeras tarefas utilizando teclas que me lembram máquinas de escrever de meu tempo. Os livros do futuro citados pelo misterioso visitante, nada mais eram do que os denominados computadores pessoais que seriam tão difundidos, e comumente incorporados à sociedade contemporânea. Havia mais um detalhe importante, um elo de ligação entre todas as pessoas que relataram terem sido visitadas pelo desconhecido homem. Todos os depoimentos sem exceção confirmaram que os usuários de computadores, foram surpreendidos pelo visitante no momento em que liam uma determinada história intitulada "O selo do livreiro antigo". A maneira de agir era idêntica em todos os casos: Sentado diante do computador, alguém lia atentamente a história de um imigrante italiano chamado Pedro Batista Finemore, que viajara ao Rio de Janeiro para assumir uma livraria deixada pelo avô. Descrições davam uma idéia do lugar que seria uma simples livraria, não fosse um segredo revelado que surpreenderia o novo dono, fazendo-o comprovar as palavras do avô, ao descobrir pessoalmente um livro especial e ler um conto intitulado "O visitante inesperado e os livros do futuro". Ali absorvido pela história, prosseguiu lendo a narrativa de um detetive que investigou o misterioso homem. No momento em que o investigador relatava, em quais circunstâncias o sombrio visitante havia aparecido, sentiu discretamente o leitor, uma presença física e misteriosa próximo a seu corpo. Porém com seus olhos fixos nas palavras que liam na tela do computador, não percebeu de imediato que uma silhueta desconhecida, formava-se atrás da cadeira em que estava sentado; silenciosamente braços estenderam-se no ar revelando mãos protegidas por luvas negras, que desceram cuidadosamente prestes a lhe tocar os ombros. Aproximou sua face encoberta pelo capuz, da capa negra que lhe descia até os joelhos; então parte dos lábios puderam ser vistos, e os dentes apareceram parcialmente num sorriso sinistro. Podia-se quase sentir a respiração do misterioso homem que sussurrou baixo aos ouvidos do leit....

TRRRRRIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIMMMMMM!!!...

O barulho ensurdecedor do relógio despertador assustou Pedro Finemore, atento ao relato do detetive, fazendo-o com que quase caísse da cadeira. Pegou o objeto e desativou a campainha, sem conseguir raciocinar direito sobre o que acabara de ler. Permaneceu em silêncio com o livro aberto entre os braços na mesa. Não havia mais dúvida acerca da veracidade das palavras escritas por Giuseppe Valencio Finemore. Foi tentado a prosseguir, mas fechou o livro para reordenar seus pensamentos, imersos na história do conto que havia lido até aquele momento. Além disso alguém tocava a campanhia da livraria. Pedro Batista Finemore deixou a sala reservada, subiu a escada correndo, e atravessou o corredor central entre as estantes até chegar à porta. Um homem alto vestindo um elegante paletó cinza estendeu o braço direito apresentando-se:
- Bom dia, eu presumo que seja o novo proprietário da livraria.
- Sim, sou Pedro Batista Finemore, por favor entre.
Dizendo isto o homem entrou na livraria, depois de tirar o chapéu panamá colocando-o embaixo do braço, e prosseguiu com o diálogo:
- Sr. Pedro, eu vim aqui para consultar um livro específico.
- Entendo, terei prazer em ajudá-lo. De que livro se trata?
- Não é um livro comum - os olhos do homem observaram Pedro Batista Finemore em silêncio por alguns instantes.
- Entendo, por favor me acompanhe.
Pedro Finemore acompanhou seu cliente até o balcão, e lhe solicitou gentilmente que apresentasse sua documentação, pedido que foi obedecido de imediato pelo homem. Em seguida retirou do bolso da camisa, a lista que o avô havia lhe deixado contendo alguns nomes, e a comparou com os documentos do cliente que tinha em mãos.
- Eu peço desculpas pelo contratempo, mas estas medidas são necessárias Sr. Hector.
- Não se preocupe, eu entendo perfeitamente, já estive aqui outras vezes Sr. Pedro, e sei do cuidado de seu avô para com o livro com o selo do livreiro antigo.
- Exatamente, agora Sr. Hector queira me acompanhar por favor.
Dizendo isto Pedro Batista Finemore desceu novamente a escada seguido pelo homem, lhe entregou o misterioso livro, e antes de se retirar da sala reservada deixando finalmente seu cliente a sós, lhe deu o último conselho:
- Não se esqueça de ajustar o relógio despertador.
- Claro, obrigado mais uma vez, preciso apenas de alguns minutos Sr. Pedro.
Pedro Batista Finemore fechou a porta, e subiu as escadas pensando qual daqueles cinco contos, seu primeiro cliente do dia escolheria para ler. Lembrou-se dos títulos intrigantes que havia lido há poucos minutos, e já sentia um desejo incontrolável de retornar àquele recinto secreto, assim que o homem partisse para prosseguir a leitura. De qualquer forma não demoraria muito, para que o relógio despertador soasse novamente, na sala reservada do depósito na livraria do velho Giuseppe.

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

A FONTE DE GELO NEGRO

Quando Frank Thompsom abriu a porta do quarto n° 354, do Hotel em que me hospedava na pequena cidade de Blackpool para me dar a notícia na tarde daquela quinta-feira, encontrou-me sentado confortavelmente no sofá com o jornal aberto na seção de viagens, vasculhando as linhas em busca de um navio de expedição que rumasse em direção ao norte, e que me levasse para o inóspito e gelado continente branco. Pude ver apenas o esboço do sorriso de Frank oculto pela sombra do chapéu, mal contendo o fôlego para me comunicar o fato:
- Gustav! conseguimos! conseguimos! - exibiu um sorriso ainda maior fitando-me sentado no sofá.
Dobrei o jornal, o coloquei no colo e observei meu amigo parado na porta aguardando alguma manifestação de minha parte:
- Quando partimos?
- Dentro de dois dias, falei pessoalmente com o capitão do navio.
- Qual o nome?
Frank ajeitou o casaco preto que vestia e retirou do bolso um pedaço de papel lendo-o vagarosamente:
- Capitão Robert Fallen... acho que é assim mesmo que se pronuncia.
- Não o conheço.
- Não se preocupe Gustav, obtive informações de que ele já esteve três vezes no Ártico.
Frank Thompsom fechou a porta e desceu as escadas correndo em direção ao depósito do porto, para arrumar os preparativos para o embarque de dois cientistas financiados pela Sociedade Geográfica Britânica, que procuravam há três meses por uma embarcação cujo destino fosse o desconhecido continente branco. Depois de passar por diversos portos ingleses finalmente encontramos uma possibilidade real de viagem, quando soubemos que o navio St. Paul Vernon II estava ancorado em Blackpool.
Era agradável testemunhar de perto o movimento típico dos marujos carregando mercadorias no porto, numa confusão de idiomas estranhos pronunciados ao mesmo tempo. Por todos os lados um vai-e-vem de marinheiros e veículos cruzavam os amplos corredores ao lado das embarcações; caixotes de vários tamanhos estavam empilhados, notei que os menores serviam de bancos e mesa de poker para uma roda de um grupo de marinheiros, em horário de folga no canto de um dos depósitos portuários. Outros apenas abriam uma garrafa de vodka e enchiam os copos sobre as caixa de madeira, relembrando as viagens e os momentos marcantes. Ainda pude ver dois homens distantes debruçados sobre as caixas; estavam em silêncio escrevendo o que me pareceu serem cartas, pareciam imunes ao barulho e ao caos natural, inerente ao ambiente dos homens que passam parte da vida nos oceanos, e nos portos espalhados pelo mundo. Quando o apito ensurdecedor soou, os dois homens levantaram, guardaram os papéis nas bolsas e saíram correndo em direção a uma fragata que havíamos deixado para trás. Com passos rápidos caminhávamos para o final do porto, e depois de mais alguns minutos atravessando aquele misterioso universo, avistamos no último espaço o imponente St. Paul Vernon II. O casco negro levantava-se descomunalmente sobre nossos olhos, com a proa anunciando-se muito acima de nossas cabeças, como um corajoso gigante a desafiar os mares. Pude perceber no topo do mastro mais alto um marinheiro ajeitando uma bandeira, e apertando as cordas das velas que enchiam-se com o vento da tarde, inflando-se como pulmões do navio. E assim em 21 de Outubro de 1898 partimos do porto de Blackpool rumo ao Ártico sob o comando de Robert Fallen. Nosso objetivo era atingir o acampamento mais distante na planície de Alert. O navio transportava suprimentos para vários acampamentos, mas o capitão nos alertara que apenas uma vez havia conseguido chegar em Alert, em virtude das circunstâncias climáticas e da distância que possivelmente teríamos que percorrer de trenó, pois as águas naquela região quase sempre congelavam, prendendo o navio naquela traiçoeira planície branca de gelo. Numa de nossas conversas Robert Fallen afirmou ter ficado preso com toda a tripulação por 57 dias na planície de Alert esperando o degelo, para que pudesse prosseguir a viagem. Era estranho imaginar quão vulnerável era o seu barco naquele mundo gelado; no porto o navio impunha-se numa imagem intimidadora diante dos homens, mas ali cercado pelas águas, o St. Paul Vernon II não passava de um pequeno e insignificante ponto preto absorvido pela imensidão fria e silênciosa do oceano gelado.
Viajamos as três primeiras semanas cruzando o oceano em dias ensolarados e com o mar calmo, até entrarmos no estreito do Canadá, quando as águas gélidas representavam uma ameaça assustadora para qualquer corpo que caísse no mar. Enfrentamos uma tempestade por dois dias seguidos, mas o valente navio resistiu aos açoites das gigantescas ondas continuando a rumar para o norte.
- Não subestime este mar calmo Sr. Gustav. - as palavras do capitão ficaram gravadas para sempre como um aviso para mim. - a temperatura pode matar um homem em poucos minutos.- dizendo isto acendeu um cigarro e prosseguiu andandos serenamente pelo convés, na noite calma e estrelada que retornara para alívio da tripulação.
Permaneci encostado na amurada do navio observando o horizonte, enquanto alguns blocos de gelo começavam a aparecer na água denunciando nossa aproximação com o destino. E assim com o passar dos dias, os blocos aumentaram de tamanho e cada vez mais preenchiam a paisagem aproximando-se do navio, que rumava vagarosamente desvencilhando-se dos mais perigosos como se esquivasse de um labirinto de gelo. Jamais esquecerei a manhã em que toda a tripulação foi surpreendida por um colossal iceberg que passou próximo ao navio, fazendo a embarcação parecer um frágil barquinho de brinquedo diante do tamanho da montanha gelada flutuante. Avisados pelo apito gritante do barco os tripulantes saíram para fora, enquanto outros se amontoavam nas janelas para contemplar no topo do iceber um majestoso urso polar, que observava em silêncio a atrevida embarcação invadir seu frio e pacato reino.
Depois de 54 dias de viagem pelo Atlântico, o St. Paul Vernon II parou na planície de gelo distante 13 quilômetros do acampamento inglês. Um grupo de marinheiros tentava remover com pás a fina camada de gelo formada no piso do convés. Robert Fallen vistoriava o serviço e enquanto arrumávamos os trenós para prosseguir a viagem, o capitão nos deu seu último conselho antes de descermos com a bagagem e os cães na planície de Alert. Aproximou-se de mim e de Frank e vestindo um grosso casaco coberto de neve, apertou nossas mãos despendindo-se:
- Desejo-lhes boa sorte senhores, e espero que não estejam a procura da fonte de gelo negro.
- Como soube da fonte gelo negro capitão? - perguntou Frank olhando para o experiente homem do mar.
- Nas minhas viagens trouxe outros exploradores ambiciosos a procura da fonte, mas ninguém conseguiu encontrá-la até hoje.
- Como sabe que vamos procurá-la capitão?
- Durante a tempestade um de meus oficiais encontrou seu diário perdido no canto do convés e me entregou, perdoe-me o atrevimento mas tive que abrir o livro para identificar o dono, e foi assim que li uma de suas anotações mencionando o roteiro da expedição de Oxford Cliff.
- Agora compreendo capitão - ao escutar o nome de Oxford Cliff entendi como Robert Fallen havia descoberto nossa missão. Não havia mais como encobrir nosso objetivo, e apenas concordei com a cabeça observando o capitão com o semblante preocupado nos encarando.
Oxford Cliff o famoso explorador irlandês, viajou ao Ártico pela primeira vez aos 21 anos de idade, convidado por um capitão da marinha inglesa que ingressara nas viagens de exploração. E assim o aventureiro passou os 35 anos seguintes a bordo de navios que rumavam para o norte. Com o passar do tempo sua ousadia rendeu-lhe notoriedade junto a sociedade inglesa, o que lhe possibilitou montar pessoalmente sua primeira expedição rumo ao continente branco aos 34 anos, com o único objetivo de encontrar a lendária fonte de um metal desconhecido denominado gelo negro. De acordo com os relatos dos exploradores antigos, além de outros documentos históricos acerca do lugar, o misterioso metal seria encontrado dentro de uma gruta escondida na região de Alert. Tal notícia despertou o interesse imediato de nações como Inglaterra, França, Portugal e Espanha, uma vez que a descoberta do gelo negro resultaria em superioridade bélica para a nação dententora do segredo. Durante anos consecutivos expedições foram montadas e enviadas pelos países com o objetivo de localizar a fonte do metal, embora todas tenham fracassado. Neste ímpeto aventureiro muitas vidas foram perdidas, Oxford Cliff nunca mais foi visto depois empreender uma busca pela planície de Alert com mais quatro exploradores, e apenas um deles retornou com o diário do aventureiro, mas morreu antes de ser encontrado por uma equipe de resgate. Quatro navios despareceram em alto mar com toda a tripulação, e o próprio Robert Fallen havia perdido seu irmão, capitão de um dos navios naufragados.
- Gustav! Frank! nao façam isto, insisto pela última vez.
Mal conseguíamos escutar a voz do capitão, em meio ao barulho do vento congelante do Ártico, junto ao latido dos cães presos aos trenós. Olhei para longe e tentei em vão distiguir o horizonte branco que fundia-se com o próprio céu.
- Perdoe-me capitão, mas fomos pagos pelo governo inglês para tentar encontrar a fonte, e como já sabe eu tenho em mãos um material valioso que acredito que me levará até o metal - Estendi meu braço e apanhei o diário que Robert Fallen me entregou.
- E quanto a advertência deixada por Oxford Cliff no final de seu diário Sr. Gustav?
- Esta falando da ameaça para os exploradores ambiciosos?
- Sim, estou, e se acredita na veracidade das informações deveria acreditar também na última mensagem deixada por Oxford Cliff.
- Capitão! Conhece algum explorador que não seja ambicioso? francamente não acredito nas últimas palavras redigidas. Provavelmente estas linhas tenham sido uma tentativa de resguardar o segredo do gelo negro e afugentar exploradores indesejados.
- Vejo que não posso dissuadi-lo de seu intento Sr Gustav, e espero sinceramente que tenha razão.
O Vento congelante aumentava sua força a cada minuto que passava. Os cães permaneciam agrupados enquanto a neve caia naquela paisagem assutadora.
O capitão permaneceu em silêncio nos observando por alguns instantes, enquanto minhas mãos abriam o pequeno díario na última página, para reencontrar a mensagem que eu já guardara na memória. Frank Thompsom e Robert Fallen aproximaram-se curiosos de mim, e juntos lemos as últimas palavras do diário do explorador irlandês, que soavam como uma terrível condenação sobre todos os que buscavam a fonte de gelo negro: "Para a segurança da vida de todos os homens que tentarem descobrir a fonte de gelo negro, deixo registrada minhas últimas palavras: afastem-se da fonte de gelo negro; aqueles que a encontrarem por ambição, numa estátua de gelo negro se converterão." Curiosamente as últimas palavras da mensagen estavam quase ilegíveis, observei atentamente e percebi que a caligrafia mudava conforme o texto aproximava-se do fim, como se Oxford Cliff tivesse sido impedido de escrever naturalmente aquelas últimas letras na folha de papel.
A ameaça da mensagem no diário de Oxford Cliff, além das advertências do capitão Robert Fallen não nos impediram de partir naquela fria manhã; e assim rumamos em direção ao acampamento na planície de Alert, enquanto o capitão nos observava ao longe até desaparecermos de sua visão, engolidos pela intensa névoa daquela paisagem de gelo.
Dezessete dias após a nossa partida reencontramos o St Paul Vernon II no mesmo local ainda preso pelo chão de gelo, e frustados com nosso fracasso na busca pela fonte de gelo negro. Esperamos mais oito dias até que o chão da planície quebrasse permitindo ao navio prosseguir a viagem. Em nosso retorno a Inglaterra narramos ao capitão nossa expedição, seguindo minuciosamente as pistas deixadas pelo explorador irlandês. Abrimos um grande mapa do Ártico numa mesa refazendo com o lápis todo percursso que empreendemos em vão. Depois de tantas expedições sem obter sucesso, começamos a refletir se Oxford Cliff e a fonte de gelo negro, não seriam apenas mais uma dentre tantas lendas criadas pelos homens dos mares; e assim mantivemos nossos pensamentos até o ano de 1929.
Em Outubro de 1929 dois pesquisadores norte-americanos sofreram um acidente na planície de Alert, durante escavações para estudo acerca do degelo dos grandes icebers. Ao caminhar sobre a perigosa superfície, ambos foram supreendidos por uma traiçoeira fenda escondida por uma fina camada de gelo, que os levou a cair de uma altura de aproximadamente 5 metros, e escorregar por um corredor de gelo que terminava numa câmara subterrânea. Quando um dos homens acendeu a lanterna na escuridão, deparou-se com a inacreditável cena de uma estátua de um explorador sentado numa cadeira. Aproximaram-se e notaram que a estátua parecia feita de um metal negro.
Assim que soube da decoberta entrei em contato com Frank Thompsom que agora tornara-se professor de geologia, e duas semanas depois estávamos viajando para Londres, pois soubemos que a estátua seria exposta num dos museus da cidade.
Não tenho palavras para descrever ao meu leitor a emoção e o entusiasmo que me dominaram, quando entramos na sala do museu, onde no centro do recinto descansava a solitária estátua negra de um explorador com o semblante sério, sentado numa cadeira com as laterais ricamente detalhadas, e os braços repousando nos descansos. Observei na mão direita da estátua os dedos compridos e finos suspensos no ar, que brilhavam com a luz do ambiente; pareciam ter sido congelados inesperadamente, e eternizavam o movimento daquela mão para todos os curiosos visitantes. Meu amigo professor permaneceu mudo ao meu lado por alguns instantes, e em seguida me chamou a atenção para a outra mão da estátua. Olhei para a outra mão e notei que segurava uma caneta. Lembrei imediatamente da mensagem escrita no final do diário de Oxford Cliff, com a estranha caligrafia, e um grande temor se apoderou de mim quando considerei a possibilidade, de que talvez o último ato daquele homem tenha sido escrever uma mensagem, informando o perigo que representava a fonte de gelo negro enquanto seus dedos congelavam a cada segundo; isto explicaria a caligrafia cada vez mais ilegível da mensagem.
- Gustav! não esta achando que a estátua é...? - Frank me observava absorvido pelo mistério da estátua, e com o olhar reflexivo distante que tornava a sua voz quase imperceptível.
Mas antes que Frank Thompsom terminasse a pergunta o interrompi rapidamente voltando a realidade:
-Não Frank! claro que não! o que você esta dizendo?
Sinto-me na obrigação de confessar ao meu leitor que minhas palavras proferidas, não foram sinceras no dia em que visitei a estátua com Frank Thompsom; desde o primeiro momento nunca tive a certeza sobre a origem da estátua que repousava naquele museu, sobretudo depois que exames realizados por renomados Institutos Europeus, constataram a presença de um metal desconhecido presente na composição daquele objeto. Até hoje visito o museu e nestas ocasiões sempre adentro na sala destinada exclusivamente à estátua de Oxford Cliff, este foi o nome dado ao objeto. Contemplo-a por alguns minutos em silêncio. Sua imagem evoca em minha memória o passado de aventuras incríveis pelas quais passei, junto com meu amigo Frank Thompsom, e vejo que tivemos muita sorte em retornar vivos da expedição do St Paul Vernon II. Mas uma pergunta sempre emergirá em mim, quando me deparar com a imagem do homem sério sentado na cadeira olhando para a frente: Aquela será apenas uma estátua de metal de um homem sentado na cadeira? ou trata-se do próprio Oxford Cliff vítima de uma ambição e de uma história inacreditável, clamando para que a ciência descubra a verdade que permanece adormecida naquela sala de museu?

quarta-feira, 1 de julho de 2009

O PRESENTE DE OLIVER KLERICH


SEGUNDA-FEIRA, 28 DE JUNHO DE 2009.
Na véspera de completar oito anos de idade, Oliver Klerich recebeu a visita do seu tio Daniel Frandestik por volta das 21:00hs de uma quarta-feira, quando toda família estava reunida na sala de TV assistindo ao noticiário local. A residência dos Klerich localizava-se num quarteirão de casas tradicionais de um bairro nobre da cidade de Ishim. A casa fora passada de geração a geração e estava ali certamente há mais de cem anos. Durante este tempo fora restaurada por duas reformas; assim, quem passava em frente ao local deparava-se com uma construção de madeira nobre, janelas ornamentadas com belas plantas, e um pequeno corredor de pedras cortando o jardim frontal de gramas baixas bem cuidadas, terminando numa escada de sete degraus que levava à porta de entrada. De noite via-se a iluminação forte através das cortinas, além das luzes especiais do jardim que incidiam sobre o canteiro de flores conferindo um charme especial àquela imagem.
Naquela quarta-feira antes mesmo de Daniel Frandestik apertar a campainha da casa, o cachorro da família despertou do aconchego do tapete e começou a latir, correndo da sala de TV para a porta de entrada pressentindo a aproximação do visitante, mas os Klerich já aguardavam a presença do homem, cuja visita havia sido previamente anunciada ao pai de Oliver no dia anterior através de um telefonema. Impossibilitado de comparecer ao aniversário do sobrinho que ocorreria no dia seguinte, devido a uma viagem inadiável de negócios para a capital, Daniel não teve opção a não ser comparecer um dia antes para abraçar o sobrinho, e presenteá-lo com algo que trazia numa embalagem quadrada, enfeitada num papel colorido brilhante envolto por um laço vermelho. Sabendo antecipadamente da surpresa que aguardava o filho na porta de casa, o pai de Oliver Klerich deixou que ele próprio a abrisse naquela noite.
Ao abrir a porta de casa Oliver deparou-se com um homem de 58 anos, de estatura média, trajando um casaco de inverno azul escuro com listras negras que lhe descia um pouco abaixo da cintura, o pescoço estava protegido por um cachecol, tinha um olhar sincero por trás de um óculos grande de lentes retangulares, e um sorriso discreto esboçado nas maçãs gordas da face, porém um pouco escondido por um bigode grisalho. Oliver nutria uma estima especial pelo tio uma vez que Daniel trabalhara como marinheiro há 28 anos viajando pelo mundo. Tanto tempo a bordo de uma embarcação mercante, traziam histórias fantásticas que o sobrinho parava para ouvir toda vez que recebia a visita do tio em casa. Os braços do garoto envolveram o homem simpático que adentrou rapidamente na casa, e quando se afastou alguns passos permitindo que o tio se abaixasse para ficar na sua altura, segurou o misterioso pacote com as duas mãos que lhe foi entregue, observando-o cuidadosamente com os olhos brilhantes de euforia.
Enquanto Daniel se aproximava do irmão e saudava toda a família, o garoto subiu rapidamente a escada com o presente nos braços, em direção ao seu quarto localizado no primeiro andar da casa seguido pelo cachorro. Fechou a porta e sentou-se na cama escutando o ruido distante de seu pai e seu tio dialogando e rindo. Na privacidade do quarto seus dedos começaram a desatar o nó que envolvia a caixa que estava em seu colo, sob os olhares atentos do cão deitado embaixo de uma cadeira. Finalmente livrou-se do laço vermelho e com gestos rápidos rasgou o papel brilhante que ocultava o segredo, revelando-lhe uma caixa de madeira com uma tampa. Colocou a caixa sobre a cama e com cuidado removeu a tampa. Quando seus dedos retiraram o papel de seda que encobria o presente, Oliver reconheceu a figura de um pequeno boneco articulado de madeira preso no interior da caixa através de alguns grampos de metal. Aproximou seus olhos da caixa para vê-lo com mais detalhes, e pode constatar que o boneco era todo feito com pedaços de madeira polida, harmoniosamente encaixadas nas articulações através de alguns pequeninos parafusos, numa imagem que lhe conferia um certo aspecto humano. Ficou a observar por alguns segundos aquela simplicidade encantadora do brinquedo, notando que um pequeno toco de madeira representava a cabeça do boneco; não haviam olhos, boca, e nenhum detalhe na face. Oliver retirou o presente da caixa, trazendo para perto de si o boneco deitado inerte na palma da mão, com os frágeis braços de madeira escorrendo por entre seus dedos e as pernas caídas para o lado, mas o silêncio daquele momento foi rompido quando a mãe do garoto o chamou para baixo. Segurando o boneco nas mãos desceu a escada encontrando o tio já a porta. Depois da despedida carinhosa, o garoto jamais se esqueceria das últimas palavras que Daniel Frandestik lhe dirigiu discretamente na porta de casa naquela noite:
- Oliver, este brinquedo não é um simples boneco de madeira, trate-o como uma pessoa e ele vai ajudá-lo, mas guarde segredo destas palavras. - e dizendo isto Daniel desapareceu na escuridão da noite com passos apressados em direção ao carro.
A partir daquele dia Oliver levaria consigo o presente ganho do tio durante quase todo o tempo, e foi assim no dia seguinte mesmo em meio a outros presentes recebidos por ocasião de sua festa de aniversário. Na estante do quarto, livros novos dividiam espaço com miniaturas de carros e aviões recém-adquiridos, alguns jogos de tabuleiros empilhados no canto, uma caixa contendo inúmeras peças de um quebra-cabeças que ainda não o atraía, e uma bola de futebol no chão do quarto, coberto de pedaços rasgados de papel de presente; mas no criado situado ao lado da cama o boneco ocupava lugar de destaque encostado no abajur, como se observasse o garoto durante toda a noite. Pela manhã quando descia para tomar o café levava o boneco e o colocava sentado na mesa ao lado de seu prato, repetindo o gesto na hora do almoço, e pela noite sob os olhares curiosos da mãe que permitia. Ao sair para a escola o escondia cuidadosamente dentro da mochila, e assim passava toda a tarde com o brinquedo sob seus cuidados de modo que nenhum outro garoto da turma descobrisse.
Passaram-se duas semanas até que certa noite Oliver despertou durante a madrugada, após ouvir um barulho que parecia vir de sua estante de brinquedos. Deitado na cama o garoto observava o ambiente de seu quarto banhado pela frágil luz daquela noite, que atravessava a janela e invadia o recinto com uma penumbra que lhe permitia ver vagamente os objetos espalhados naquele espaço. Sentado no tapete da porta de entrada, o cão permanecia imóvel olhando fixamente para a estante de brinquedos como se denunciasse algo para o dono. Quando Oliver olhou para o lado notou que o boneco de madeira havia desaparecido de seu lugar costumeiro ao lado do abajur. Assustado o garoto saltou da cama olhando para o cão com um ar recriminador imaginado que o animal havia pego seu presente, quando foi surpreendido mais uma vez por outro ruído que parecia vir de trás das caixas empilhadas. Um temor apoderou-se de Oliver fazendo com que o cão latisse voltando toda a atenção para a estante. Parado ao lado da cama o garoto observava a pilha de caixas com receio de aproximar-se, e por alguns instantes teve a impressão de que as caixas estavam sendo arrastadas, pareciam deslizar vagarosamente sobre a superfície.
Por alguns segundos o garoto permaneceu imóvel com olhar fixo nas caixas de jogos amontoadas no canto da estante, não havia mais dúvida mesmo diante da luz fraca presente no quarto de que algo movia as caixas para a frente. Oliver estendeu o braço esquerdo e sua mão apanhou o taco de beisebol encostado na parede; tomou coragem e temendo tratar-se de um rato deu dois passos em direção as caixas, enquanto juntava suas mãos levantando os braços pronto para golpear o roedor com o taco, assim que o intruso surgisse diante de seus olhos. Mas quando seus braços estavam prestes a desferir o golpe mortal foi surpreendido pela imagem mais inacreditável de sua vida; assustado pode reconhecer aquelas pequeninas mãos de madeira que empurravam as caixas para frente. O garoto não conseguia acreditar no que via, a menos de um metro de si o boneco presenteado pelo tio saiu de trás das caixas, caminhando naturalmente como se fosse uma pessoa, até ficar parado em pé na estante diante de Oliver.
O cão permanecia atento ao misterioso boneco de madeira, mas de repente latiu, fazendo o brinquedo correr novamente para trás das caixas e o garoto abaixar o taco de beisebol. Oliver levou o cachorro para fora do quarto, trancou a porta e voltou a ficar parado diante da estante gesticulando vagarosamente para o boneco voltar.
- Venha, não tenha medo, eu já tirei Scott daqui! Venha! Venha!
E assim novamente aquele pequenino corpo de madeira saiu de trás da escuridão das caixas, e com breves passos aproximou-se de Oliver, postando-se em pé na superfície da estante na altura dos olhos do garoto surpreso diante do que presenciava.
Os dias se passaram e não demorou muito para que o garoto descobrisse que o boneco ganhava vida somente de noite. Certo dia encarando o brinquedo que caminhava pela mesa de estudos e tentava abrir um pequeno baú, tomou a ousadia de perguntar pelo nome do desconhecido amigo, e qual não foi a surpresa do garoto ao ver que o boneco abaixou-se na mesa, apanhou um pedaço de lápis com as duas mãos, e meio desajeitado riscou na superfíce clara o nome STILL. Em certas ocasiões, mesmo não tendo olhos o boneco parecia encarar o garoto, e quando a resposta limitava-se a um sim ou não, gesticulava a cabeça de maneira afirmativa ou negativa o que bastava para que se fizesse entender.
Dois meses depois Daniel reapareceu num domingo e levou Oliver para um passeio no parque central da cidade. Enquanto caminhavam pela rua deserta típica de um final de semana, o tio observou o garoto que segurava o boneco numa das mãos e lhe perguntou:
- Sua mãe me disse que você não se separa deste boneco Oliver! como vai o Still? - esboçou um sorriso na face esperando a resposta do sobrinho.
- Ele vai bem, por que não me disse que ele era vivo? - o garoto olhou para o tio enquanto continuavam a caminhar em direção ao parque.
- Porque não seria uma surpresa, e porque eu não teria marcado aquele dia para o resto da tua vida como eu consegui com este presente Oliver; acho que jamais vai esquecer o dia em que viu Still pela primeira vez na tua estante.
E assim a tarde de domingo passou com Daniel respondendo ao garoto sobre o misterioso presente, numa conversa repleta de perguntas de um menino inocente e curioso. Sentado no banco da praça, de frente para um lago cujas águas paradas formavam um espelho amarelo refletindo a luz do sol, o velho marinheiro encarou o sobrinho mais uma vez e num tom sério lhe disse:
- Tem uma coisa sobre o Still que eu ainda não contei.
O garoto segurava o boneco imóvel nas duas mãos, e voltou-se atento para as palavras do tio:
- Você deve cuidar do Still...tem que cuidar dele para sempre Oliver...
- Esta bem tio.
- Preste atenção filho... tem que cuidar e brincar com Still até quando estiver adulto... nunca pare entendeu?
- Entendi, por que tio? por que não posso parar?
- Porque no dia em que a tua infância morrer,... o velho deteve o folego por alguns segundos antes de prosseguir, parecendo receoso diante da revelação prestes a fazer ao menino - Still também morrerá, o boneco também morrerá Oliver, você entendeu filho?
Daniel Frandestik observou o sobrinho apenas confirmar afirmativamente com a cabeça e sem palavras naquela tarde de domingo. Com o semblante preocupado e os olhos marejados o garoto observou o tio assustado diante das duras palavras proferidas, mas rapidamene ambos voltaram a conversar com o velho marinheiro tentando tranquilizá-lo, e explicando novamente que Oliver deveria tomar o cuidado de jamais abandonar o presente, pois caso contrário Still se tornaria um simples boneco de madeira sem vida.

QUARTA - FEIRA, 1 DE JULHO DE 2009.
Enquanto redijo estas linhas em meu diário, e transmito ao leitor esta inacreditável história de minha infância, penso no quão absurdo foi minha atitude de não tomar o devido cuidado, depois de ter sido alertado pelo meu tio na tarde daquele domingo. Não há um dia em que não me culpe pela morte de meu amigo, levando comigo as lembranças daqueles mágicos e inesquecíveis momentos, presentes durante todos estes anos em que mantivemos este segredo vivo juntamente com meu tio Daniel, que jamais revelou qualquer palavra a outra pessoa. Eu já não meu lembro com certeza, hoje estou velho, tenho família, e sou um empresário bem sucedido no setor de construção; mas aproximadamente quatro anos depois de nossa conversa no parque, certa noite encontrei Still imóvel encostado no abajur, sentado e caído de lado no criado de cabeceira da cama. A princípio não me preocupei esperando que num passe de mágica o boneco retornasse à vida como fazia todas as noites, mas o tempo foi passando, passando, e Still permaneceu imóvel encostado no abajur naquele aspecto triste e abandonado de um brinquedo esquecido e superado pelo tempo. Passei aquela noite em claro sentado na cama observando o boneco e esperando em vão por algum sinal de vida durante toda a madrugada, até que me lembrei das palavras de meu tio Daniel, fazendo com que minha própria conduta daquela semana caísse sobre mim como a mais temível condenação que já recebi. O motivo da morte de Still não é difícil de ser deduzido pelo sábio leitor de minhas linhas. Fazia uma semana que eu não levantava durante as madrugadas para brincar com Still, e assim não percebi que o tempo me distanciou do meu amigo, e que as novidades adquiridas com o passar dos anos, bem como o fato de que passava cada vez mais tempo fora de casa, o tornaram um presente obsoleto. Curiosamente tenho a vaga lembrança de naquela semana ter sido incomodado por alguma força que tentava me acordar todas as noites, algo que parecia querer puxar o cobertor sobre meu corpo no intuito de me despertar. Hoje não tenho mais dúvidas de que esta força eram as pequeninas mãos de madeira de Stilll, tentando sem sucesso me acordar de algum jeito enquanto teve vida.
Agora estou sentado na mesa do escritório de minha casa, no silêncio da noite, e neste momento sempre sinto falta daquelas brincadeiras de infância, e de Scott que agora trocou de dono e passou a morar na casa de minha filha. Ainda conservo o abajur que está sobre a mesa próximo a este diário, e bem a minha frente coberto pela luz amarela está o incrível presente que ganhei de Daniel Frandestik há muitos anos. Esta imagem é uma sentença que me acompanhará em silêncio pelo resto de meus dias. Sempre que entro neste escritório e observo minha mesa, todos os demais objetos desaparecem com exceção de apenas um; meus olhos se detém num pequeno boneco de madeira que permanece sentado ao lado do abajur, olhando para baixo, parece solitário numa atitude reflexiva. As vezes me pego chamando por ele, da mesma forma que no primeiro dia em que o vi escondido atrás das caixas de jogos acuado pelos latidos de Scott. No fundo ainda nutro um resquício de esperança de que Still algum dia reviva na mesa de meu escritório e saia andando por ele.

sexta-feira, 15 de maio de 2009

CARTA PARA Mrs. BATHO WENSBURNY


Em 17 de Setembro de 2005 a agência dos Correios da cidade de Falmouth, foi demolida por um grupo de presidiáros designados para prestar uma série de serviços comunitários nos arredores da região. O ar frio daquela manhã de inverno inglês invadia o uniforme dos presos, enquanto um grupo de guardas reunidos em círculo observavam os detentos, saboreando o café quente trazido por uma moradora local. A imagem de um grupo de aproximadamente 30 homens revirando os escombros de concreto e ferragem, amontoando as ruínas da antiga estação postal, e removendo-as em carriolas até um caminhão estacionado do outro lado da rua, chamava a atenção da pacata população local. Numa atitude natural de desaprovação as pessoas atravessavam do outro lado da rua observando atentamente, algumas paravam diante dos guardas e se informavam acerca do fato, tomando conhecimento de que a antiga construção agora cederia espaço à um escritório de uma seguradora, enquanto outras nem mesmo prosseguiam o percursso ao reconhecer os uniformes que identificavam os criminosos, preferindo retornar e fazer outro caminho. Assim quiz o destino que naquela manhã um dos detendos chamado Arthur Crosswer, encontrasse no meio dos escombros um envelope amassado e perfeitamente lacrado coberto de poeira. Cuidadoso com o olhar vigilante dos guardas Arthur escondeu estrategicamente o envelope na manga da camisa, até o momento seguro em que pode assoprar a poeira, e descobrir que um dos lados da carta trazia apenas o nome "Mrs. Batho Wensburny" escrito elegantemente. Tomou a liberdade de indagar alguns companheiros se conheciam tal sobrenome misterioso obtendo apenas a resposta negativa. Aproximou novamente o papel sujo dos olhos, e ao virar o outro lado da carta encontrou a mais enigmática escrita que já lera em sua vida: "Não abrir até Setembro de 2005." Um turbilhão de pensamentos confusos inundou a mente de Arthur enquanto observava a frase corrida aparentemente sem sentido diante de seus olhos. Escondeu a carta no bolso da calça temendo ser descoberto pelo guarda mal encarado que aproximava-se.
Quando o toque de apagar as luzes foi dado pontualmente as 22:00hs, todas as celas num movimento uniforme escureceram deixando apenas a iluminação central do corredor acesa. Engolido por aquele edifício frio cujas paredes sujas das celas quase sempre estavam cobertas de desenhos de crianças, fotos de familiares, recortes de jornais, e outros elementos permitidos que tornassem aquele espaço menos opressor para os ocupantes, Arthur Crosswer permanecia deitado na parte de baixo do beliche da cela número 354, para a qual havia sido transferido há dois dias. Condenado por estelionato e considerado um dos falsários mais inteligentes da Inglaterra, o homem magro e baixo com aparência de fraco e o cabelo negro penteado para trás, fora pego depois de meses de investigaçôes através de um plano muito bem arquitetato pela Scotland Yard. E assim há 8 meses a astúcia criminosa de Arthur sucumbira diante da inteligência da polícia inglesa o colocando naquele presídio. Mesmo deitado seus olhos observavam o pequeno espaço que o cercava; o canto era ocupado por um vaso sanitário e uma pia encardida com um sabonete e algumas escovas dentro de uma garrafa de plástico. Olhou para a parede e pode ver que um pedaço sujo e escuro descoberto, trazia o que pareciam ser dois nomes escritos diretamente no concreto, não conseguiu lê-los de onde estava, e preferiu permanecer deitado examinando o ambiente. No chão havia uma sacola com roupas do companheiro de quarto, um assaltante de bancos chamado Robinson Valterez que havia sido condenado recentemente a 6 anos de prisão, e que dormia profundamente. Quando o guarda passou vagarosamente em frente a cela fazendo a ronda da noite, Arthur fingiu estar dormindo pois sabia que aquela era a última checagem do dia; logo depois como faziam cotidianamente, os vigias se reuniam na sala com uma pequena TV ligada, e sentados a mesa atravessavam a madrugada em meio ao jogo de cartas, alheios ao que acontecia nas celas desde que permanecessem as escuras.
A luz fraca do corredor bastava para que Arthur Crosswer pudesse ler a carta que guardara consigo durante todo o dia. Colocou a mão no bolso e retirou o envelope antigo e amassado, relendo o desconhecido nome "Mrs. Batho Wensburny" e a inexplicável observação "Não abrir até Setembro de 2005". Rasgou o envelope amarelado pela extremidade retirando duas folhas de papel, e desdobrou-as encontrando uma caligrafia que começava da seguinte forma:
"Mrs. Batho Wensburny,
É com imenso prazer que lhe dirijo estas palavras. Se estiver lendo estas linhas confome minhas orientações indicadas na carta, então deduzo que este envelope foi aberto somente em Setembro de 2005, tempo mais do que necessário para que meu objetivo se realizasse e lhe beneficiasse igualmente. Peço minhas desculpas por estas palavras aparentemente confusas, sendo assim permita-me explicar os fatos imediatamente: Há um ano estive no presídio de Falmouth trabalhando como médico, e durante este tempo conheci um homem chamado Bernard Roschild. Tomei conhecimento de que Bernard Roschild era um engenheiro reconhecido da sociedade local, e que fora condenado há 7 anos de prisão por ter atirado e ferido um rival, que lhe provocara por ocasião da festa de inaugurãção de um Hotel da cidade. Com o passar do tempo adquiri a confiança de tal homem, que certa noite me revelou um segredo numa roda de conversa na mesa do refeitório; disse-me então ter um plano de fuga em andamento planejado com outros quatro presidiários. De acordo com Bernard Roschild em Maio de 2005 um túnel havia começado a ser cavado do lado de fora do presídio, por um grupo de homens de confiança extremamente cuidadosos com a execução de todos os detalhes. Assim segundo os cálculos de Bernard todo a execução do plano levaria quatro meses. Depois daquele dia voltamos a conversar algumas vezes sobre o andamento do plano, mas infelizmente três semanas depois Bernard foi transferido para um presídio em Londres, juntamente com mais doze homens numa decisão tomada pelo diretor do presídio sem maiores explicações. Cheguei a imaginar que tal homem certamente teria descoberto o plano de Bernard, mas percebi que isto não ocorreu, pois nenhuma vistoria havia sido feita na cela Bernard indicando que a decisão não fora tomada em razão do plano de fuga. No dia seguinte fui imediatamente contatar os homens que executavam o plano, previamente avisado por Bernard acerca do local e da forma segura de me apresentar. E é aqui que esta carta lhe interessa em especial Mrs. Batho Wensburny. Bernard Roschild foi transferido na mesma época em que seu filho adentrou no presídio, depois de ter sido condenado injustamente no caso que repercutiu em toda Falmouth. Não vou me aprofundar no caso em questão, mas é sabido hoje com toda segurança que seu filho é inocente do crime que foi condenado, numa manipulação muito bem arquitetada pela acusação. Infelizmente as evidencias irrefutáveis da inocência de seu filho surgiram depois que a sentença fora dada. Depois de encontrar o grupo de Bernard Roschild, fiz um acordo com os homens no qual eles continuariam com o plano em andamento, em troca de um valor que eu pagaria quando seu filho fosse resgatado do presídio. Consegui a soma com diversas pessoas de confiança que se mostraram indignadas com a condenação de Scott, e assim reuni o montante estabelecido pelo grupo de Bernard para prosseguir com o plano conforme combinado. Por isso estou lhe mandando esta carta, se os cálculos de Bernard Roschild estiverem corretos, os homens devem estar acabando o túnel nos próximos dias, e de acordo com o mapa mostrado a mim quando os encontrei, o túnel chagará exatamente na cela em que seu filho se encontra, pois obtive informações cuidadosas de dentro do presídio acerca do prédio e da cela que ele ocupa. Peço minhas siinceras desculpas pela ousadia de tal ato, e admito que atravessei a minha própria fronteira moral e ética, mas diante de tamanha injustiça perpetrada contra um homem, não nos restou outra saída a não ser livrar seu filho deste lugar no qual nunca deveria ter pisado. Assim sendo peço que contate teu filho se possível preparando-o para a fuga, uma vez que minhas tentativas se mostraram infritíferas, pois fui impedido de encontrá-lo pela própria administração da prisão que não me deu maiores satisfações. Acredito que não agiriam desta forma com uma mãe que tentasse visitar seu filho, sensibilizados pela tua presença. Ademais agradeço a espera de abrir esta carta no tempo oportuno, pois se o fizesse anteriormente poderia comprometer a segurança do plano dos homens de Bernard Roschild. Desejo sinceramente que esta carta lhe encontre bem e com saúde, pedindo a sua compreensão para o que fizemos, na certeza de que o plano terá o desfecho por todos nós almejados, e que portanto muito em breve seu filho não mais ocupará a cela 354 desta prisão. Com todo o respeito e solidariedade que lhe dedico.
Um amigo anônimo representando as vozes indignadas de Falmouth."
Arthur Crosswer deu um salto levantando-se da cama surpreso quando leu o número 354 escrito na carta. Em pé na penunbra do quarto, segurava a carta nas mãos e observava novamente o número que saltava aos seus olhos, informado no relato do misterioso médico que acabara de ler. Seu corpo permaneceu imóvel mas interiormente agitado, deu uma olhada na direção da sala dos guardas pra se certificar de que ninguém percebeu seus movimentos, e encostou na grade fria de ferro pensando em silêncio com o olhar distante focado na luz central do corredor. Permanceu imerso na imensidão de informações e coincidências que por alguns minutos inundaram seus pensamentos. As perguntas brotavam em sua mente num ímpeto descontrolável, Aonde estaria o filho de Mrs. Batho Wensburn? E quanto a número da cela informado na carta?
- Ei!..Robinson!... Robinson!... acorde!... acorde! - as mãos de Arthur empurravam o homem tentando-o despertar no silêncio daquela madrugada.- vamos! - Arthur tentava acordar Robinson tomando cuidado para que o seu tom de voz não o denunciasse.
- Acorde!.. Robinson?... acorde!,... preciso lhe fazer uma pergunta!- continuou empurrando o companheiro que despertou preguiçosamente e com uma cara de mau-humor.
- O que foi?... droga!... sabe que horas são? - o homem espreguiçou na cama e descobriu-se com o lençol, observando com os olhos cerrados Arthur em pé no meio da cela, segurando duas folhas de papel nas mãos e esboçando um sorriso no rosto.
- Qual é a graça Arthur?... me acorda no meio da madrugada e ainda acha graça? - o semblante de Robinson adquiriu um ar de raiva diante da visão de Arthur observando-o, e antes que ele o agredisse foi interrompido pelas palavras de Arthur:
- Calma meu amigo, tenho boas notícias para nós dois, asseguro que depois que me ouvir vai me agrader por tê-lo acordado, mas antes me responda uma pergunta: Quem ocupou esta cela antes de mim?
Robinson sentou-se na cama, passou a mão na barba por fazer, e arrumando os cabelos olhou para Arthur respondendo:
- Um garoto estranho aqui de Falmouth, o tipo quieto sem muita conversa, ficou aqui poucos dias.
- Lembra-se do nome?
- Não, nem coversava com este preso, passava o tempo todo lendo cartas que recebia, espera! espera um minuto!...
- O que foi?
- Ali na parede!..Ali! - dizendo isto Robinson levantou o braço esquerdo apontando-o para o canto escuro da parede, que continha os dois nomes escritos no concreto que Arthur já tinha visto enquanto estava deitado. - ele escreveu o nome ali Arhtur!
Arthur Crosswer aproximou-se da parede escura, e pode ver um pouco acima de sua altura as marcas riscadas. Quando seu rosto chegou bem perto da parede, a escrita ilegível no concreto revelou-se diante de seus olhos confirmando suas suspeitas. Seus olhos puderam ler no ponto mais alto o nome Bernard Roschild sulcado na massa escura de concreto, e logo abaixo o nome Scott W.
- Scott Wensburny! - repetiu consigo enquanto Robinson o observava sentado na cama.
Depois de alguns segundos refletindo enquanto observava os dois nomes registrados na parede, Arthur Crosswer virou-se novamente em direção ao companheiro de cela indagando-o:
- O que houve com Scott W? Ele foi transferido daqui?
- Não, ele foi solto, conversando com um dos guardas fiquei sabendo que o pobre garoto era inocente da acusação. Alguém conseguiu retirá-lo deste lugar.
O falsário voltou a sentar na cama, dobrou novamente as folhas guardando-as no bolso, enquanto pensava em toda história que acabara de ler. Robinson desceu da parte de cima do beliche e aproximou-se de Arthur confuso com as perguntas no meio da noite. Sentou numa banqueta baixa encostada na cela, e o encarou perguntando:
- Porque o interesse em Scott W?
- Porque este homem vai nos ajudar a fugir daqui meu amigo. - dizendo isto esboçou um sorriso discreto que deixou Robinson ainda mais confuso.
Arthur Crosswer deitou novamente na cama, com a cabeça descansando nas mãos colocadas para trás sobre o travesseiro, e respirou profundamente pronunciando a seu companheiro as últimas palavras daquela noite antes de pegar no sono:
- Arrume suas coisas, fugiremos nos próximos dias.
As palavras de Arthur Crosswer prenunciaram o que se seguiu dois dias depois no presídio de Falmouth. No dia 20 de Setembro quando o guarda encarregado do turno da manhã, deu o toque para os detentos saírem da cela e assim prosseguir a contagem de presos, notou que dois homens daquele prédio não obedeceram ao chamado. Apitou mais uma vez advertido os ocupantes da cela 354 de que tal demora implicaria em punições mais severas, mas novamente não obteve respostas. Quando o guarda chegou na entrada de cela, ficou imóvel diante da imagem que viu: a pequena cela estava completamente vazia, não haviam roupas e nenhum objeto dos ocupantes; e bem no meio do chão, naquele espaço reduzido, um buraco de aproximadamente 70 centímetros de diâmetro com terra e pedaços de concreto quebrado espalhados pelo piso. Enquanto do lado de fora todos os presidiários observavam em silêncio e curiosos a cela 354, e os guardas corriam afoitos atendendo ao alarme de fuga disparado, Arthur Crosser e Robinson Valterez atravessavam a fronteira do condado em segurança auxiliados pelos homens de Bernard Roschild.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

O EMISSÁRIO DA LUA CRESCENTE

Aconteceu numa quinta feira chuvosa. Inclinado sobre a mesa de meu escritório, folheava algumas anotações para compor um texto que me fora pedido pelo chefe de uma editora de livros. O silêncio da madrugada foi rompido pelo ruído da água da chuva batendo no vidro da janela, juntamente com o vento cortante que balançava as árvores. Sempre gostei de escutar aquele som da chuva que se faz presente nas noites de sono. Quando fechamos os olhos reclinados no travesseiro e não pensamos em absolutamente nada, reclusos a nós mesmos, apenas aguardando o corpo ceder a ausência de pensamentos, para então deixarmos este mundo visível e mergulharmos nos mistérios daqueles momentos de uma quase inexistência terrena. Minha mão retirou do casaco o relógio de bolso que me fora presenteado por meu avô. Puxei o relógio pela corrente dourada que brilhava e que me acompanhava há 35 anos. Aquela peça resistira ao tempo e a modernidade, e continuava funcionando com precisão e elegância próprias, típica de um objeto que já não se encaixava naquele cenário. Foi então que escutei o ruído na porta principal, as batidas secas e insistentes me despertaram de um sono que dominava-me aos poucos anestesiando meu corpo sorrateiramente. Descansei a caneta no tinteiro, e devolvi o maço de folhas de papel no canto da mesa; as batidas prosseguiam e fizeram-me ajeitar o casaco com pressa, descendo rapidamente os degraus que me levaram a sala principal. Meus dedos aproximaram-se da fechadura da porta, e quando a chave foi colocada no buraco da tranca de metal, fui surpreendido por um cartão que foi jogado por de baixo da porta deslizando até parar ao lado de meu pé esquerdo. Inclinei-me e apanhei o pedaço de papel que trazia apenas as seguintes palavras escritas em vermelho: “Caro Sr. Paulo Strik, o encontrarei hoje às 23:00hs”. O curioso cartão não trazia nenhuma assinatura e tampouco o local do citado encontro. Terminei de destravar a fechadura, e abri a porta encontrando apenas a claridade fraca de um poste de luz que iluminava o jardim. Além dos muros da casa observei dois guardas distantes caminharem vagarosamente por entre as árvores, e em seguida desaparecerem ao dobrarem a esquina engolidos pela preguiçosa névoa que invadia as ruas. Não havia mais sinal de ninguém. De volta ao escritório, reclinado no sofá que ocupava o canto daquele cômodo, observei novamente o cartão cujas palavras enigmáticas permaneceriam na minha mente até a noite do dia seguinte. Não imaginava que estava preste a receber o mais estranho e inesquecível visitante de toda a minha vida.
É estranho como o tempo parece desacelerar quando estamos na expectativa de algum acontecimento; e nunca me senti tanto a mercê do tempo quanto naquele dia, inevitavelmente vulnerável àquela situação em que todo o cotidiano de nossas vidas parece insignificante diante de um desdobramento do destino. O relógio da parede marcava 19:00 hs. quando fechei a pequena janela do escritório. Debruçado sobre a mesa escura de madeira, observei a xícara de porcelana azul bem a minha frente dividindo o pequeno espaço com a antiga máquina de escrever e o rádio; um vapor subia do seu interior e espalhava o aroma de café em todo o recinto. No canto esquerdo um armário continha diversos livros empilhados organizadamente, alguns empoeirados pelo esquecimento, outros recheados com folhas de anotações e marcadores de páginas; nem mesmo a governanta do lugar atrevia-se a mexer naquele ambiente após minhas recomendações. Disputando o espaço dos livros, uma caixa de madeira nobre do oriente ricamente detalhada adormecia no canto da estante, trancada por um pequeno cadeado prateado. Um porta-retratos e uma pilha de jornais amontoados dividiam a prateleira mais baixa. Meus olhos detiveram-se no porta-retratos, que trazia a imagem de um garoto com um sorriso inocente vestindo um boné preto e um macacão sujo de barro. Seus braços envolviam um cão que olhava atentamente para a foto. O belo animal de pelagem branca e maior do que o garoto convivera naquela casa por onze anos. Meus pensamentos me levaram novamente para minha infância, enquanto observava fixamente aquela fotografia, e assim fui inundado por inocentes e alegres lembranças ao me reencontrar com aquela imagem eternizada no tempo.
A escuridão exterior parecia querer invadir meu espaço, impedida apenas pelo vidro da janela e pela forte luz daquele cômodo. Bebi mais um gole do café e reclinei-me na cadeira, distinguindo apenas o distante ruído da empregada arrumando as panelas na cozinha. Comecei a recapitular aquela quinta-feira já quase terminando; em todos os momentos e em todos os afazeres de um dia agitado, minha mente sempre estivera centrada nos acontecimentos daquela madrugada, e nas palavras do cartão prenunciando uma visita que se fosse confirmada, estaria há poucas horas de apresentar-se diante de mim. Naqueles minutos de descanso estendi o meu braço e puxei o primeiro jornal da pilha que aumentava no armário, quebrando a rotina de algo que fazia toda manhã. Desdobrei o jornal do dia e após folhear algumas páginas encontrei uma matéria redigida por um repórter local cujo título em letras grandes e negras dizia: “MAIS UM DESAPARECIMENTO DO EMISSÁRIO DA LUA CRESCENTE?”, e assim prosseguia o relato: “As autoridades que investigam o desaparecimento dos três cidadãos nos últimos meses já o apelidaram de O emissário da lua crescente, (alcunha lhe atribuída em função do misterioso criminoso agir somente em noites de lua crescente). Embora os acontecimentos ainda estejam cercados de muitas suposições, tendo em vista que até o presente momento nenhuma testemunha o viu agindo, os fatos até agora corroboram para o inquestionável seqüestro das três vítimas, todas desaparecidas pelo mesmo espaço de tempo de uma semana, numa ação criminosa bem planejada sem deixar rastros para os investigadores. Na última declaração a imprensa o chefe de polícia afirmou que os desaparecimentos estão interligados, pois a perícia encontrou nas casas de todas as vítimas um pequeno cartão manuscrito contendo poucas palavras, cujo conteúdo ainda permanece em sigilo a pedido do comissário para não atrapalhar as investigações. Acerca das declarações das vítimas, o comissário afirmou ainda não terem os depoimentos contribuído substancialmente para o esclarecimento do caso, embora tenham apresentados vários pontos em comum. A assessoria de imprensa do departamento de polícia, informou que desde o retorno a suas casas os ex-desaparecidos permanecem incomunicáveis sob tratamento psiquiátrico, em razão dos depoimentos indicarem um forte estado de desequilíbrio emocional.” Uma sensação de temor e alerta percorreu todo o meu corpo quando terminei de ler aquelas linhas, e o primeiro pensamento inevitável foi o de considerar a possibilidade de ter me tornado na próxima vítima do misterioso visitante que batera a minha porta. Puxei o cartão do meu bolso, o coloquei sobre a mesa diante de meus olhos, e o reli por várias vezes imerso num explosão de sentidos que me atemorizavam de forma descontrolada. Rapidamente me levantei da cadeira, e com o jornal a mão, corri para a janela puxando o pequeno pino da trava empurrando o vidro para fora; meus olhos observaram a imensidão negra celeste pontilhada de estrelas sob minha cabeça, aquela silenciosa e desordenada cúpula de faíscas prateadas, rendia-se a beleza de uma lua brilhante encoberta parcialmente, confirmando ainda mais meus temores acerca do tempo naquela noite. Meus olhos detiveram-se por alguns instantes naquela imagem, hipnotizados pelo temor que a visão daquela lua alimentava em meus pensamentos, e somente retornaram para o interior do escritório quando escutei uma desconhecida voz bem próxima a mim romper o silêncio, denunciando que havia mais alguém naquele recinto.
- Boa noite Sr. Strick!... – uma voz forte denunciava um homem que encontrava-se a poucos passos da janela, e o medo novamente percorreu meu corpo paralizando-me por alguns segundos antes de me virar.
O relógio da parede marcava exatamente 23:00hs quando um visitante desconhecido de aparentemente 40 anos, parado em pé no meio do escritório vestindo um sobretudo negro e segurando uma pasta, retirou o chapéu para em seguida inclinar-se num gesto cordial diante de mim. Meus olhos detiveram-se com mais atenção naquela cena; por baixo do sobretudo uma calça azul escura descia elegantemente até os sapatos negros que brilhavam, pude perceber ainda que trazia na cintura um punhal, cujo cabo estava repleto de símbolos estranhos. Vestia uma camisa branca e uma gravata também azul.
- Perdoe-me se o assustei com minha súbita aparição, esta é uma situação recorrente e embaraçosa no meu trabalho, quase sempre assusto meus anfitriões. – dizendo isto o misterioso homem colocou o chapéu em baixo do braço e estendeu a mão esquerda em minha direção. Os olhos escuros observavam-me atentamente, a face alongada encoberta por espessos cabelos negros e os nariz curvilíneo conferiam-lhe um ar sombrio . Os lábios pequenos deixaram escapar um sorriso antes de me dizer seu nome:
- Permita-me apresentar,... meu nome é Eliot Vandrabe.
- O meu é Pa....- subitamente fui interrompido pelas palavras daquele homem..
- Paulo Strick!... eu já sei.
- Como? Como sabe? Eu asseguro que não o conheço. – lembrei que de fato Eliot Vandrabe conhecia meu nome, pois já o havia lido no cartão que me fora enviado.
- Mas eu o conheço há muito tempo Sr. Strick – o homem sentou-se na cadeira colocando a pasta no colo, o chapéu no chão, e convidou-me a tomar o outro assento prosseguindo - Sr. Strick, certamente esta será a conversa mais incomum que já teve na sua vida, acredite! Não vai crer em tudo o que vai escutar embora eu assim deseje profundamente.
- O que está havendo? Como entrou na minha casa?
- Por favor, eu lhe peço, sente-se comigo e tentarei lhe explicar o motivo de minha visita. – apontou mais uma vez a mão em direção a cadeira que ainda permanecia vazia próximo a mesa.
Me afastei da janela e decidi atender ao pedido, ajeitando-me na cadeira enquanto Eliot Vandrabe observava-me abrindo sua pasta e retirando um grosso livro e uma caneta.
- Como você entrou na minha casa? É um ladrão!? Arrombou a porta sem os empregados perceberem?
- Não, não arrombei a porta de entrada, e muito menos entrei por ela Sr. Strick – Eliot respondeu sem ao menos me fitar, pois seus olhos procuravam por entre as páginas do livro. De repente parou de folhear as páginas e me encarou fixamente diante da minha pergunta:
- Como então como chegou aqui?
- Eu não entrei pela sua porta Sr. Strick, e não subi as escadas, eu apenas apareci nesta sala.
- Apareceu? Como apareceu?
- Bom! Não existe uma maneira fácil de dizer isto Sr. Strick, e antes de lhe dizer as próximas palavras, eu quero lhe assegurar que não sou louco embora tenha certeza que assim o Sr. me considerará.
- O que está havendo? – Subitamente me coloquei de pé pois a aflição crescente impedia-me de ficar imóvel, sentia meu coração acelerado enquanto observava a calma com que o misterioso visitante continuava a falar.
- Sr. Strick permita-me esclarece-lo lhe fazendo uma pergunta: O Sr. acredita em anjos?
Durante alguns segundos o ambiente foi tomado de um silêncio ameaçador. Permaneci mudo diante da natureza da indagação de Eliot Vandrabe.
- O Sr. me ouviu? Me responda! – folheou mais algumas páginas do livro até encontrar a página que procurava, e com a caneta na mão prossegiu fazendo algumas anotações – Por que será que vocês temem os assuntos de ordem superior? – e voltou a me encarar esperando uma resposta que não veio.
- Não tenha vergonha, esta reação é natural, sempre as observo quando me revelo para as pessoas,... eu sou um emissário dos ares, um anjo como muitos de vocês preferem me chamar.
- Está me dizendo que você é um anjo?
- Sim, e antes que comece a me questionar permita-me provar a veracidade de minhas palavras.
Sentei-me novamente na cadeira e observei aquele homem começar a ler a página do livro de capa dura que segurava nas mãos. Depois de algumas frases ditas, me surpreendi ao perceber que escutava o relato da minha própria vida, com acontecimentos marcantes desde minha infância, incluindo detalhes secretos apenas de meu conhecimento. As descrições minuciosas e precisas de eventos marcantes da minha existência, aumentavam meus temores acerca das palavras de Eliot Vandrabe, e me senti perdido numa confusão de questionamentos que me deixaram a mercê das mais inacreditáveis considerações.
Assim que terminou a leitura daquele resumo acerca de minha pessoa encarou-me com o semblante sério dizendo:
- Tomei conhecimento de que a população local me denominou O Emissário da lua crescente,... ao longo da história já recebi muitos nomes, mas acho que este soa como o mais ameaçador. – dizendo isto fechou o livro mantendo a caneta na página que havia lido.
- O que você fez com os três ex-desaparecidos?
- Eles fazem parte de um grupo de pessoas escolhidas para participar de uma experiência, um grupo do qual o Sr. faz parte Sr. Strik.
- Que experiência?
- Eu vou lhe contar, mas antes permita-me resumir algumas informações acerca do meu trabalho.
- Prossiga.
- Obrigado pela compreensão, imagino o quanto incomum já lhe parece esta conversa Sr. Strick, mas eu lhe asseguro mais uma vez que todas as minhas palavras são verdadeiras; eu vou tentar lhe explicar de uma maneira clara – e dizendo isto ajeitou o livro sobre a perna, observou o relógio na parede e continuou – e vou tentar ser breve, tenho outra visita ainda esta noite, o que certamente me impedirá de responder-lhe todas as perguntas.
Permaneci em silêncio ainda confuso pelas inacreditáveis palavras daquele estranho, cheguei a considerá-lo realmente maluco, mas diante das revelações pessoais de minha vida que acabara de escutar Eliot Vandrabe relatar, não havia como negar-lhe uma certa credibilidade que me era incômoda; além disso pude perceber que aquele homem estava armado, e mesmo temendo aquele momento, a ousadia superou qualquer precaução de minha conduta, me levando a indagá-lo acerca do assustador objeto que trazia preso na cintura:
- Se é um anjo porque carrega o punhal?
- Proteção Sr. Strick,..apenas proteção.
- Proteção do que?
- Daqueles que não acreditaram em mim, e pensaram que eu era um criminoso, ou um maluco. Acredite, já tive que me defender em certas ocasiões; aqui no seu mundo me comporto como um ser humano comum, sujeito aos mesmos perigos que vocês. Exceto quando apareço para meus anfitriões como o fiz há alguns minutos atrás neste quarto. Nestas ocasiões me é permitido utilizar os meios naturais de aparecimento.
- Desculpe Sr Eliot, realmente não consigo acreditar em tuas palavras.
- Eu sei, e confesso que isto é decepcionante no meu ofício, ainda não possuo o poder de persuasão que gostaria, quase sempre acontece desta forma, e assim não consigo acalmar as pessoas que são escolhidas.
- Me diga de uma vez! escolhidas pra que? estive lendo os jornais e já sei que aquelas pessoas desapareceram por uma semana.
- Exatamente
- Aonde as levou?
- Não as levei a lugar algum Sr. Strick, na verdade elas permaneceram em casa o tempo todo, duvido que tiveram coragem para atravessar os portões.
- Chega deste jogo!! – gritei de maneira explosiva e enérgica denunciando o estado de temor em que me encontrava. Minhas palavras fizeram que Eliot Vandrabe se levantasse, levando a mão a cintura e segurando o punhal ainda preso a seu corpo, me fazendo a revelação mais absurda que já ouvira:
- Elas se tornaram invisíveis!
- Invisíveis??
- Sim, estavam lá o tempo todo, mas não podiam ser vistas, nem ouvidas, não conseguiram nenhuma forma de comunicação com este mundo durante uma semana.
- Que tipo de maluco é você?
- Não sou maluco e minhas palavras são verdadeiras. Pense nas notícias que leu há poucos minutos. Sabe porque aquelas três outras pessoas estão incomunicáveis Sr. Strick?
Permaneci de pé em silêncio observando fixamente Eliot Vandrabe gesticular com as mãos enquanto prosseguia:
- Porque elas disseram a verdade, disseram que estavam nas suas respectivas casas mas estavam invisíveis e impossibilitadas de qualquer forma de contato, pense Sr. Strick! o senhor acreditaria numa história destas? Certamente não!, se afirmasse estas palavras seria taxado de louco e submetido a algum tratamento psicológico, exatamente como está acontecendo com os ex-desaparecidos
- Eu quero que se retire de minha casa agora!
- Eu já vou, apenas mais uma informação, meu intuito aqui é de ajudá-lo, de tentar avisa-lo antecipadamente do que acontecerá no sentido de amenizar seu trauma, porque dentro de alguns minutos vai experimentar uma sensação assustadora de solidão, estará perto das pessoas e não será visto, falará o quanto quiser e não será escutado, o Sr. entendeu?
- Dentro de alguns minutos?!
- Sim, assim que eu desaparecer de sua frente Sr. Strick, o que acontecerá em três minutos.
- Vou me tornar invisível e incomunicável em três minutos?
- Sim,...escute, eu sei que está me achando maluco, e esta história absurda, mas antes de partir tenho apenas um último pedido, talvez se convença de minhas palavras com isto. – Eliot Vandrabe colocou a mão esquerda no pasta e retirou do interior uma pequena máquina fotográfica. – Me permita fotografá-lo depois que o Sr. tiver desaparecido, e quando revelar estas fotos daqui há uma semana então se lembrará de minhas palavras.
Dizendo isto Eliot Vandrabe afastou-se alguns passos ficando bem próximo a parede, e enquadrou uma imagem parcial do escritório por trás das lentes daquela máquina posicionada bem a frente de minha pessoa. Permaneci sentado na velha e desbotada cadeira, afastada um pouco da mesa, observando aquele estranho que focava a máquina em minha direção. A minha frente e sobre a mesa uma máquina de escrever e um aparelho grande de rádio ocupavam quase todo o espaço; sobre o rádio o telefone negro antigo que já não funcionava tão bem amontoava-se com outros pequenos objetos. No canto da mesa havia alguns livros e outro porta retratos com a foto de uma menina trajando um vestido branco, e ao fundo da imagem um armário baixo contendo mais livros e catálogos que havia adquirido nas minhas últimas viagens.
Quando o relógio da parede marcava exatas 23:58hs daquela quinta-feira desapareci dentro de meu escritório. Passaram-se alguns minutos até que Eliot Vandrabe tirasse uma foto de mim antes de sumir diante de meus olhos numa visão inexplicável. Jamais esquecerei sua imagem imóvel de pé, encostado a parede e manuseando a pequena máquina fotográfica, enquanto o observava sentado na cadeira e apoiado com o braço na mesa. Uma semana depois quando revelei a fotografia espantosamente constatei que de fato minha imagem não aparecia na foto, mesmo afirmando para todos que estava sentado naquela cadeira no preciso instante em que Eliot Vandrabe registrou a cena. Afinal uma semana já havia decorrido desde sua visita ao meu escritório, e eu voltara a aparecer conforme havia acontecido com as outras pessoas visitadas pelo Emissário da lua crescente. Tomei a liberdade de publicar no início de meu relato a foto tirada por Eliot Vandrabe naquela noite, e asseguro a todos que tomarem conhecimento desta história, que estou bem ali sentado na cadeira. Quanto ao que aconteceu comigo durante o tempo em que permaneci desaparecido, e mesmo depois do meu retorno, desculpo-me diante do leitor e reservo-me o direito de findar meu relato, que talvez já tenha se tornado cansativo, e por demasiado extenso.