sábado, 31 de maio de 2008

A ESCADARIA DE ANTONY KRUFTER

Durante o ano de 1875 chegou ao Brasil um jornalista conhecido como Antony Krufter. Correspondente de um dos jornais da época, Antony teve o privilégio de testemunhar um momento histórico de transição política conturbado, registrando em suas colunas um governo monárquico fragilizado e que portanto não se sustentava mais. Antony morreu em 1899 vitimado por uma tuberculose.
Em uma de nossas últimas conversas, ocorridas sempre no mesmo Café que durante toda a sua vida serviu como ponto de encontro de políticos, artistas e escritores, tive o privilégio de escutar aquela que seria sua mais incrível história relatada ainda que de maneira informal, entre um grupo de amigos que dividiam uma mesa daquele lugar descompromissadamente.
A noite começava a trazer o silêncio típico às ruas estreitas que cercavam o Café; curiosamente ao adentrar naquele lugar discreto, um esconderijo secreto cravado no centro da capital ladeado por casarões coloniais, o visitante era imediatamente transportado para o ambiente de um café parisiense do século XIX, de aspecto elegante e refinado nos seus mínimos detalhes. Sentado com mais dois amigos médicos, observávamos aquele homem alto e magro gesticulando, que disse-nos ter tido na noite anterior um estranho sonho descrevendo-nos com detalhes e do seguinte modo:
- "Meus caros amigos, imaginem vocês que na noite de ontem tive o mais estranho sonho que já me ocorreu!... encontrava-me sozinho em um longo corredor sem janelas e que não possuía saída em um dos lados, enquanto a outra extremidade apresentava uma porta fechada. Sem opção e sentindo-me já angustiado corri para a porta que para minha sorte achava-se somente encostada. Com um simples toque na maçaneta a porta deslizou vagarosamente para trás, revelando-me aos poucos um aposento muito pequeno também sem janelas e sem portas;... uma única escada em espiral no centro levava a um nível superior oculto pelo teto,... Me aproximei e qual não foi o meu espanto ao constatar,... quero dizer!... ao verificar que o piso da escada era feito de folhas de jornais!... Abaixei-me para observar com mais atenção, e pude ver inúmeras primeiras-páginas de jornais que pareciam-me de várias partes do mundo tratando do mesmo assunto, pois as fotos que acompanhavam os artigos eram as mesmas em diferentes jornais,... imaginem os Senhores!... estranhamente nenhum jornal trazia a data, e todas as línguas impressas por onde corriam meus olhos eram-me desconhecidas!!..."
O início da narrativa do jornalista foi o suficiente para silenciar definitivamente meus outros dois amigos médicos, que conversavam sobre a eficácia de um novo medicamento recém elaborado e colocado em uso nos hospitais, para combater as infecções resultantes de uma epidemia que assolava a região. O assunto obscuro e intrigante imediatamente repercutiu na mesa, e impaciente um dos corpulentos médicos, trajando um uniforme branco impecável sentado ao meu lado, interrompeu o relato de Antony pedindo-o para que ao menos nos descrevesse as fotografias; pedido que o caro jornalista atendeu de imediato:
-"Lembro-me de ter notado uma foto no primeiro degrau que me chamou a atenção, pois estampava um grupo de pessoas de semblantes cansados, cujos corpos disformes e esqueléticos permaneciam de pé enfileirados diante do fotógrafo, separados por uma cerca de arame farpado..."
- Certamente trata-se de uma visão sobrenatural e assustadora meu amigo! - afirmou o mesmo médico que lhe havia solicitado a descrição, virando cuidadosamente em seu copo uma escura garrafa de vinho que o garçom acabara de colocar na mesa.
- Concordo!... se eram esqueléticos então não pertenciam ao nosso mundo físico e sim a outro mundo desconhecido! - completou o outro ouvinte cujos óculos somados a um bigode e barba muito bem cuidados escondiam-lhe parte de suas feições, porém conferiam-lhe uma expressão de mansidão e compreensão que sempre demonstrara com os amigos. Empurrou o copo para aproveitar a generosidade do amigo que já lhe estendia a garrafa para compartilhar a bebida.
- Se eram ou não deste mundo físico não sei lhes responder amigos,... mas com certeza tratavam-se de prisioneiros, pois as pessoas trajavam o que me pareceu ser o mesmo tipo de uniforme listrado, sujo e rasgado; então respondam-me sinceramente senhores!... qual a função de uma cerca de arame farpado senão a de prender algo num espaço delimitado? - indagou o narrador.
Todos concordaram com a observação e por alguns segundos enquanto olhávamos-nos, pensativos na descrição de Antony, fez-se em nossa mesa um silêncio desolador, que só foi quebrado com o susto que tomamos causado pelo descuido de um cidadão sentado na mesa ao nosso lado, esbarrando o braço num copo de vinho que partiu-se em centenas de estilhaços quando tocou no chão, espalhando-se por baixo das outras mesas juntamente com a bebida. O homem que usava uma cartola negra e segurava uma bengala, acompanhado de uma linda mulher com um vestido preto, imediatamente levantou-se e pediu desculpas a todos os presentes, que retomaram as conversas. Neste meio tempo notei que algumas pessoas nem sequer deram conta do incidente, e só perceberam algo de diferente quando o faxineiro aproximou-se do lugar para limpar a sujeira. Então o jornalista retomou a palavra:
-"...Depois desta foto comecei a subir os primeiros degraus, e fui surpreendido um pouco mais acima por outra foto que quase pisei com meu pé esquerdo e que parecia tirada do céu..."
- Tirada do céu? Como pode suceder tal coisa?... seus devaneios não tem limite meu amigo jornalista! - disse um dos médicos levando o copo de vinho a boca para o último gole.
- "...Esta fotografia exibia uma grande coluna de fumaça que se elevava acima das nuvens, de formato semelhante a uma gigantesco cogumelo plantado no solo..." as mãos do jornalista movimentaram-se harmoniosamente no vazio, e seus dedos desenharam no ar a imagem de um cogumelo que contemplávamos absorvidos por suas palavras.
- Acho que já bebeu demais por hoje!! - afirmei com ironia observando o jornalista sentado exatamente a minha frente, que ajeitava discretamente o colarinho do seu casaco marrom, arrumando próximo a si e sobre a mesa uma pilha de livros, que carregava juntamente com um bloco de anotações, ferramenta inseparável de seu ofício que o acompanhava aonde quer que fosse.
- Esperem senhores!... analisemos também esta foto descrita por Antony!... - interrompeu novamente o médico a minha esquerda - Se ele disse ter visto uma grande coluna de fumaça então respondam-me...; o que poderia causar tal volume de fumaça?
- Um incêndio de grande magnitude!... - respondi com convicção.
- É possível,... mais alguma opinião? - dirigindo seu olhar para os outros.
- Uma explosão talvez!... - arriscou o próprio jornalista.
- Tolice!! - rebateu o médico que havia proposto a questão - Uma explosão de que?... francamente senhores!... só falta me convencerem de que uma única bomba seria o bastante para causar uma explosão deste porte!... desculpem amigos!... mas isto ultrapassa todo o limite sensatamente admitido... - a discussão estava deixando os ânimos exaltados.
- Meus amigos,... por favor,... deixemos o jornalista terminar a sua história...
Minha sugestão surtiu efeito imediato no debate que começava a se estender, pois todos silenciaram para que Antony prosseguisse com a subida pelos degraus da misteriosa escada.
- "Mais alguns passos me levaram de encontro a outra imagem!... desta vez mais surpreendente do que tudo o que já lhes contei até o momento!... inclinou-se para a mesa fitando-nos nos olhos - a fotografia mostrava o que parecia ser uma cidade futurista, composta por grandes edificações como torres que aglomeravam-se próximas umas das outras. Neste cenário dominando a paisagem urbana destacavam-se duas construções do mesmo tamanho, porém maiores do que todas as outras. O detalhe da foto mostrava uma espécie de máquina voadora,... uma grande máquina semelhante a um pássaro metálico que voava em direção a uma destas torres gigantescas, enquanto a outra parcialmente encoberta por uma espessa cortina de fumaça no topo parecia consumir-se em chamas..."
- Torres gigantes e pássaros metálicos!!... - vou escrever um livro com suas idéias Antony!... com licença amigos mas preciso retirar-me... - dizendo isto o médico sentado a minha direita empurrou a cadeira para trás e levantou-se alegando ter um compromisso inadiável que aproximava-se; despediu-se de todos cordialmente e afastou-se lamentando não poder escutar o desfecho da mórbida história. Nossos olhares acompanharam aquele médico distanciar-se, até desaparecer por completo em meio a alguns frequentadores do lugar que permaneciam de pé próximos às mesas conversando, alguns segurando uma taça de vinho ou simplesmente fumando.
- Vamos Antony!... ao contrário dele temos toda a noite para escutar sua história!... então o que aconteceu depois desta cidade, das torres e dos pássaros metálicos? - perguntou o médico que permaneceu sentado a mesa ajeitando os óculos no rosto, acendendo um charuto e soltando uma grande baforada cinzenta para o alto, ansioso para continuar ouvindo a estranha narrativa do jornalista.
- "Não houve mais nada amigos..."
O médico encarou-me espantado e em seguida questionou o jornalista:
- Como não houve nada!?... e a escada?... o que você viu depois desta foto?
- "Eu não vi mais nada porque não tive coragem de continuar a subir a escada,... estava com medo das imagens que esperavam-me adiante..."
- Você não subiu por medo?... não acredito!!... depois do seu relato acho que não vou dormir esta noite pensando na próxima fotografia!...
- "Desculpem-me se os decepcionei com o desfecho senhores,... mas depois da fotografia da cidade futurista e dos pássaros metálicos, eu desci a escada correndo e retornei ao estreito corredor..."
- E então? - perguntei
- "Então mais nada!... eu acordei meio confuso com as imagens que havia presenciado e isto é tudo de que me recordo..."
- Bem senhores!... diante de tudo o que nos foi relatado, eu lhes afirmo que certamente a espécie humana nunca chagará a tal grau de crueldade e destruição que você testemunhou em seu sonho impossível meu amigo jornalista!... afinal!... resta-nos o consolo de que tudo não passou de um sonho insano!! - proferiu efusivamente o médico, que tomando em sua mão outra garrafa de vinho que o garçom acabara de trazer a mesa, encheu nossos copos propondo o último brinde da noite, com um sorriso discreto no face.
Sentimos-nos aliviados com as últimas palavras profetizadas pelo médico; e reunidos naquela mesa com a noite avançada e poucas pessoas no Café, alheios as horas, refletimos sobre a realidade segura que nos cercava; então levantamos nosso copos de vinho e brindamos a civilização para logo em seguida partirmos.

2 comentários:

Cristiana Fonseca disse...

Cris, voltarei com mais tempo pra me deliciar tb nesta leitura
beijos,
Cris

Cristiana Fonseca disse...

Belo conto Cris, continui, quero ver outros e mais outros e outros. A escrita esta na tua alma, meu grande e maravilhoso amigo.
Beijos,
Cris