quarta-feira, 1 de julho de 2009

O PRESENTE DE OLIVER KLERICH


SEGUNDA-FEIRA, 28 DE JUNHO DE 2009.
Na véspera de completar oito anos de idade, Oliver Klerich recebeu a visita do seu tio Daniel Frandestik por volta das 21:00hs de uma quarta-feira, quando toda família estava reunida na sala de TV assistindo ao noticiário local. A residência dos Klerich localizava-se num quarteirão de casas tradicionais de um bairro nobre da cidade de Ishim. A casa fora passada de geração a geração e estava ali certamente há mais de cem anos. Durante este tempo fora restaurada por duas reformas; assim, quem passava em frente ao local deparava-se com uma construção de madeira nobre, janelas ornamentadas com belas plantas, e um pequeno corredor de pedras cortando o jardim frontal de gramas baixas bem cuidadas, terminando numa escada de sete degraus que levava à porta de entrada. De noite via-se a iluminação forte através das cortinas, além das luzes especiais do jardim que incidiam sobre o canteiro de flores conferindo um charme especial àquela imagem.
Naquela quarta-feira antes mesmo de Daniel Frandestik apertar a campainha da casa, o cachorro da família despertou do aconchego do tapete e começou a latir, correndo da sala de TV para a porta de entrada pressentindo a aproximação do visitante, mas os Klerich já aguardavam a presença do homem, cuja visita havia sido previamente anunciada ao pai de Oliver no dia anterior através de um telefonema. Impossibilitado de comparecer ao aniversário do sobrinho que ocorreria no dia seguinte, devido a uma viagem inadiável de negócios para a capital, Daniel não teve opção a não ser comparecer um dia antes para abraçar o sobrinho, e presenteá-lo com algo que trazia numa embalagem quadrada, enfeitada num papel colorido brilhante envolto por um laço vermelho. Sabendo antecipadamente da surpresa que aguardava o filho na porta de casa, o pai de Oliver Klerich deixou que ele próprio a abrisse naquela noite.
Ao abrir a porta de casa Oliver deparou-se com um homem de 58 anos, de estatura média, trajando um casaco de inverno azul escuro com listras negras que lhe descia um pouco abaixo da cintura, o pescoço estava protegido por um cachecol, tinha um olhar sincero por trás de um óculos grande de lentes retangulares, e um sorriso discreto esboçado nas maçãs gordas da face, porém um pouco escondido por um bigode grisalho. Oliver nutria uma estima especial pelo tio uma vez que Daniel trabalhara como marinheiro há 28 anos viajando pelo mundo. Tanto tempo a bordo de uma embarcação mercante, traziam histórias fantásticas que o sobrinho parava para ouvir toda vez que recebia a visita do tio em casa. Os braços do garoto envolveram o homem simpático que adentrou rapidamente na casa, e quando se afastou alguns passos permitindo que o tio se abaixasse para ficar na sua altura, segurou o misterioso pacote com as duas mãos que lhe foi entregue, observando-o cuidadosamente com os olhos brilhantes de euforia.
Enquanto Daniel se aproximava do irmão e saudava toda a família, o garoto subiu rapidamente a escada com o presente nos braços, em direção ao seu quarto localizado no primeiro andar da casa seguido pelo cachorro. Fechou a porta e sentou-se na cama escutando o ruido distante de seu pai e seu tio dialogando e rindo. Na privacidade do quarto seus dedos começaram a desatar o nó que envolvia a caixa que estava em seu colo, sob os olhares atentos do cão deitado embaixo de uma cadeira. Finalmente livrou-se do laço vermelho e com gestos rápidos rasgou o papel brilhante que ocultava o segredo, revelando-lhe uma caixa de madeira com uma tampa. Colocou a caixa sobre a cama e com cuidado removeu a tampa. Quando seus dedos retiraram o papel de seda que encobria o presente, Oliver reconheceu a figura de um pequeno boneco articulado de madeira preso no interior da caixa através de alguns grampos de metal. Aproximou seus olhos da caixa para vê-lo com mais detalhes, e pode constatar que o boneco era todo feito com pedaços de madeira polida, harmoniosamente encaixadas nas articulações através de alguns pequeninos parafusos, numa imagem que lhe conferia um certo aspecto humano. Ficou a observar por alguns segundos aquela simplicidade encantadora do brinquedo, notando que um pequeno toco de madeira representava a cabeça do boneco; não haviam olhos, boca, e nenhum detalhe na face. Oliver retirou o presente da caixa, trazendo para perto de si o boneco deitado inerte na palma da mão, com os frágeis braços de madeira escorrendo por entre seus dedos e as pernas caídas para o lado, mas o silêncio daquele momento foi rompido quando a mãe do garoto o chamou para baixo. Segurando o boneco nas mãos desceu a escada encontrando o tio já a porta. Depois da despedida carinhosa, o garoto jamais se esqueceria das últimas palavras que Daniel Frandestik lhe dirigiu discretamente na porta de casa naquela noite:
- Oliver, este brinquedo não é um simples boneco de madeira, trate-o como uma pessoa e ele vai ajudá-lo, mas guarde segredo destas palavras. - e dizendo isto Daniel desapareceu na escuridão da noite com passos apressados em direção ao carro.
A partir daquele dia Oliver levaria consigo o presente ganho do tio durante quase todo o tempo, e foi assim no dia seguinte mesmo em meio a outros presentes recebidos por ocasião de sua festa de aniversário. Na estante do quarto, livros novos dividiam espaço com miniaturas de carros e aviões recém-adquiridos, alguns jogos de tabuleiros empilhados no canto, uma caixa contendo inúmeras peças de um quebra-cabeças que ainda não o atraía, e uma bola de futebol no chão do quarto, coberto de pedaços rasgados de papel de presente; mas no criado situado ao lado da cama o boneco ocupava lugar de destaque encostado no abajur, como se observasse o garoto durante toda a noite. Pela manhã quando descia para tomar o café levava o boneco e o colocava sentado na mesa ao lado de seu prato, repetindo o gesto na hora do almoço, e pela noite sob os olhares curiosos da mãe que permitia. Ao sair para a escola o escondia cuidadosamente dentro da mochila, e assim passava toda a tarde com o brinquedo sob seus cuidados de modo que nenhum outro garoto da turma descobrisse.
Passaram-se duas semanas até que certa noite Oliver despertou durante a madrugada, após ouvir um barulho que parecia vir de sua estante de brinquedos. Deitado na cama o garoto observava o ambiente de seu quarto banhado pela frágil luz daquela noite, que atravessava a janela e invadia o recinto com uma penumbra que lhe permitia ver vagamente os objetos espalhados naquele espaço. Sentado no tapete da porta de entrada, o cão permanecia imóvel olhando fixamente para a estante de brinquedos como se denunciasse algo para o dono. Quando Oliver olhou para o lado notou que o boneco de madeira havia desaparecido de seu lugar costumeiro ao lado do abajur. Assustado o garoto saltou da cama olhando para o cão com um ar recriminador imaginado que o animal havia pego seu presente, quando foi surpreendido mais uma vez por outro ruído que parecia vir de trás das caixas empilhadas. Um temor apoderou-se de Oliver fazendo com que o cão latisse voltando toda a atenção para a estante. Parado ao lado da cama o garoto observava a pilha de caixas com receio de aproximar-se, e por alguns instantes teve a impressão de que as caixas estavam sendo arrastadas, pareciam deslizar vagarosamente sobre a superfície.
Por alguns segundos o garoto permaneceu imóvel com olhar fixo nas caixas de jogos amontoadas no canto da estante, não havia mais dúvida mesmo diante da luz fraca presente no quarto de que algo movia as caixas para a frente. Oliver estendeu o braço esquerdo e sua mão apanhou o taco de beisebol encostado na parede; tomou coragem e temendo tratar-se de um rato deu dois passos em direção as caixas, enquanto juntava suas mãos levantando os braços pronto para golpear o roedor com o taco, assim que o intruso surgisse diante de seus olhos. Mas quando seus braços estavam prestes a desferir o golpe mortal foi surpreendido pela imagem mais inacreditável de sua vida; assustado pode reconhecer aquelas pequeninas mãos de madeira que empurravam as caixas para frente. O garoto não conseguia acreditar no que via, a menos de um metro de si o boneco presenteado pelo tio saiu de trás das caixas, caminhando naturalmente como se fosse uma pessoa, até ficar parado em pé na estante diante de Oliver.
O cão permanecia atento ao misterioso boneco de madeira, mas de repente latiu, fazendo o brinquedo correr novamente para trás das caixas e o garoto abaixar o taco de beisebol. Oliver levou o cachorro para fora do quarto, trancou a porta e voltou a ficar parado diante da estante gesticulando vagarosamente para o boneco voltar.
- Venha, não tenha medo, eu já tirei Scott daqui! Venha! Venha!
E assim novamente aquele pequenino corpo de madeira saiu de trás da escuridão das caixas, e com breves passos aproximou-se de Oliver, postando-se em pé na superfície da estante na altura dos olhos do garoto surpreso diante do que presenciava.
Os dias se passaram e não demorou muito para que o garoto descobrisse que o boneco ganhava vida somente de noite. Certo dia encarando o brinquedo que caminhava pela mesa de estudos e tentava abrir um pequeno baú, tomou a ousadia de perguntar pelo nome do desconhecido amigo, e qual não foi a surpresa do garoto ao ver que o boneco abaixou-se na mesa, apanhou um pedaço de lápis com as duas mãos, e meio desajeitado riscou na superfíce clara o nome STILL. Em certas ocasiões, mesmo não tendo olhos o boneco parecia encarar o garoto, e quando a resposta limitava-se a um sim ou não, gesticulava a cabeça de maneira afirmativa ou negativa o que bastava para que se fizesse entender.
Dois meses depois Daniel reapareceu num domingo e levou Oliver para um passeio no parque central da cidade. Enquanto caminhavam pela rua deserta típica de um final de semana, o tio observou o garoto que segurava o boneco numa das mãos e lhe perguntou:
- Sua mãe me disse que você não se separa deste boneco Oliver! como vai o Still? - esboçou um sorriso na face esperando a resposta do sobrinho.
- Ele vai bem, por que não me disse que ele era vivo? - o garoto olhou para o tio enquanto continuavam a caminhar em direção ao parque.
- Porque não seria uma surpresa, e porque eu não teria marcado aquele dia para o resto da tua vida como eu consegui com este presente Oliver; acho que jamais vai esquecer o dia em que viu Still pela primeira vez na tua estante.
E assim a tarde de domingo passou com Daniel respondendo ao garoto sobre o misterioso presente, numa conversa repleta de perguntas de um menino inocente e curioso. Sentado no banco da praça, de frente para um lago cujas águas paradas formavam um espelho amarelo refletindo a luz do sol, o velho marinheiro encarou o sobrinho mais uma vez e num tom sério lhe disse:
- Tem uma coisa sobre o Still que eu ainda não contei.
O garoto segurava o boneco imóvel nas duas mãos, e voltou-se atento para as palavras do tio:
- Você deve cuidar do Still...tem que cuidar dele para sempre Oliver...
- Esta bem tio.
- Preste atenção filho... tem que cuidar e brincar com Still até quando estiver adulto... nunca pare entendeu?
- Entendi, por que tio? por que não posso parar?
- Porque no dia em que a tua infância morrer,... o velho deteve o folego por alguns segundos antes de prosseguir, parecendo receoso diante da revelação prestes a fazer ao menino - Still também morrerá, o boneco também morrerá Oliver, você entendeu filho?
Daniel Frandestik observou o sobrinho apenas confirmar afirmativamente com a cabeça e sem palavras naquela tarde de domingo. Com o semblante preocupado e os olhos marejados o garoto observou o tio assustado diante das duras palavras proferidas, mas rapidamene ambos voltaram a conversar com o velho marinheiro tentando tranquilizá-lo, e explicando novamente que Oliver deveria tomar o cuidado de jamais abandonar o presente, pois caso contrário Still se tornaria um simples boneco de madeira sem vida.

QUARTA - FEIRA, 1 DE JULHO DE 2009.
Enquanto redijo estas linhas em meu diário, e transmito ao leitor esta inacreditável história de minha infância, penso no quão absurdo foi minha atitude de não tomar o devido cuidado, depois de ter sido alertado pelo meu tio na tarde daquele domingo. Não há um dia em que não me culpe pela morte de meu amigo, levando comigo as lembranças daqueles mágicos e inesquecíveis momentos, presentes durante todos estes anos em que mantivemos este segredo vivo juntamente com meu tio Daniel, que jamais revelou qualquer palavra a outra pessoa. Eu já não meu lembro com certeza, hoje estou velho, tenho família, e sou um empresário bem sucedido no setor de construção; mas aproximadamente quatro anos depois de nossa conversa no parque, certa noite encontrei Still imóvel encostado no abajur, sentado e caído de lado no criado de cabeceira da cama. A princípio não me preocupei esperando que num passe de mágica o boneco retornasse à vida como fazia todas as noites, mas o tempo foi passando, passando, e Still permaneceu imóvel encostado no abajur naquele aspecto triste e abandonado de um brinquedo esquecido e superado pelo tempo. Passei aquela noite em claro sentado na cama observando o boneco e esperando em vão por algum sinal de vida durante toda a madrugada, até que me lembrei das palavras de meu tio Daniel, fazendo com que minha própria conduta daquela semana caísse sobre mim como a mais temível condenação que já recebi. O motivo da morte de Still não é difícil de ser deduzido pelo sábio leitor de minhas linhas. Fazia uma semana que eu não levantava durante as madrugadas para brincar com Still, e assim não percebi que o tempo me distanciou do meu amigo, e que as novidades adquiridas com o passar dos anos, bem como o fato de que passava cada vez mais tempo fora de casa, o tornaram um presente obsoleto. Curiosamente tenho a vaga lembrança de naquela semana ter sido incomodado por alguma força que tentava me acordar todas as noites, algo que parecia querer puxar o cobertor sobre meu corpo no intuito de me despertar. Hoje não tenho mais dúvidas de que esta força eram as pequeninas mãos de madeira de Stilll, tentando sem sucesso me acordar de algum jeito enquanto teve vida.
Agora estou sentado na mesa do escritório de minha casa, no silêncio da noite, e neste momento sempre sinto falta daquelas brincadeiras de infância, e de Scott que agora trocou de dono e passou a morar na casa de minha filha. Ainda conservo o abajur que está sobre a mesa próximo a este diário, e bem a minha frente coberto pela luz amarela está o incrível presente que ganhei de Daniel Frandestik há muitos anos. Esta imagem é uma sentença que me acompanhará em silêncio pelo resto de meus dias. Sempre que entro neste escritório e observo minha mesa, todos os demais objetos desaparecem com exceção de apenas um; meus olhos se detém num pequeno boneco de madeira que permanece sentado ao lado do abajur, olhando para baixo, parece solitário numa atitude reflexiva. As vezes me pego chamando por ele, da mesma forma que no primeiro dia em que o vi escondido atrás das caixas de jogos acuado pelos latidos de Scott. No fundo ainda nutro um resquício de esperança de que Still algum dia reviva na mesa de meu escritório e saia andando por ele.

Um comentário:

Cristiana Fonseca disse...

Uma bela imagem, de primeiro impacto ao olha-la , a vi bela.
Ao ler teu texto a imagem de simplesmente bela tornou-se extraordinária, tua escrita deu vida, vc tournou a imagem personagem de uma história.
Eu amo a tua escrita e o escritor tb.

Cris