quinta-feira, 20 de agosto de 2009

A FONTE DE GELO NEGRO

Quando Frank Thompsom abriu a porta do quarto n° 354, do Hotel em que me hospedava na pequena cidade de Blackpool para me dar a notícia na tarde daquela quinta-feira, encontrou-me sentado confortavelmente no sofá com o jornal aberto na seção de viagens, vasculhando as linhas em busca de um navio de expedição que rumasse em direção ao norte, e que me levasse para o inóspito e gelado continente branco. Pude ver apenas o esboço do sorriso de Frank oculto pela sombra do chapéu, mal contendo o fôlego para me comunicar o fato:
- Gustav! conseguimos! conseguimos! - exibiu um sorriso ainda maior fitando-me sentado no sofá.
Dobrei o jornal, o coloquei no colo e observei meu amigo parado na porta aguardando alguma manifestação de minha parte:
- Quando partimos?
- Dentro de dois dias, falei pessoalmente com o capitão do navio.
- Qual o nome?
Frank ajeitou o casaco preto que vestia e retirou do bolso um pedaço de papel lendo-o vagarosamente:
- Capitão Robert Fallen... acho que é assim mesmo que se pronuncia.
- Não o conheço.
- Não se preocupe Gustav, obtive informações de que ele já esteve três vezes no Ártico.
Frank Thompsom fechou a porta e desceu as escadas correndo em direção ao depósito do porto, para arrumar os preparativos para o embarque de dois cientistas financiados pela Sociedade Geográfica Britânica, que procuravam há três meses por uma embarcação cujo destino fosse o desconhecido continente branco. Depois de passar por diversos portos ingleses finalmente encontramos uma possibilidade real de viagem, quando soubemos que o navio St. Paul Vernon II estava ancorado em Blackpool.
Era agradável testemunhar de perto o movimento típico dos marujos carregando mercadorias no porto, numa confusão de idiomas estranhos pronunciados ao mesmo tempo. Por todos os lados um vai-e-vem de marinheiros e veículos cruzavam os amplos corredores ao lado das embarcações; caixotes de vários tamanhos estavam empilhados, notei que os menores serviam de bancos e mesa de poker para uma roda de um grupo de marinheiros, em horário de folga no canto de um dos depósitos portuários. Outros apenas abriam uma garrafa de vodka e enchiam os copos sobre as caixa de madeira, relembrando as viagens e os momentos marcantes. Ainda pude ver dois homens distantes debruçados sobre as caixas; estavam em silêncio escrevendo o que me pareceu serem cartas, pareciam imunes ao barulho e ao caos natural, inerente ao ambiente dos homens que passam parte da vida nos oceanos, e nos portos espalhados pelo mundo. Quando o apito ensurdecedor soou, os dois homens levantaram, guardaram os papéis nas bolsas e saíram correndo em direção a uma fragata que havíamos deixado para trás. Com passos rápidos caminhávamos para o final do porto, e depois de mais alguns minutos atravessando aquele misterioso universo, avistamos no último espaço o imponente St. Paul Vernon II. O casco negro levantava-se descomunalmente sobre nossos olhos, com a proa anunciando-se muito acima de nossas cabeças, como um corajoso gigante a desafiar os mares. Pude perceber no topo do mastro mais alto um marinheiro ajeitando uma bandeira, e apertando as cordas das velas que enchiam-se com o vento da tarde, inflando-se como pulmões do navio. E assim em 21 de Outubro de 1898 partimos do porto de Blackpool rumo ao Ártico sob o comando de Robert Fallen. Nosso objetivo era atingir o acampamento mais distante na planície de Alert. O navio transportava suprimentos para vários acampamentos, mas o capitão nos alertara que apenas uma vez havia conseguido chegar em Alert, em virtude das circunstâncias climáticas e da distância que possivelmente teríamos que percorrer de trenó, pois as águas naquela região quase sempre congelavam, prendendo o navio naquela traiçoeira planície branca de gelo. Numa de nossas conversas Robert Fallen afirmou ter ficado preso com toda a tripulação por 57 dias na planície de Alert esperando o degelo, para que pudesse prosseguir a viagem. Era estranho imaginar quão vulnerável era o seu barco naquele mundo gelado; no porto o navio impunha-se numa imagem intimidadora diante dos homens, mas ali cercado pelas águas, o St. Paul Vernon II não passava de um pequeno e insignificante ponto preto absorvido pela imensidão fria e silênciosa do oceano gelado.
Viajamos as três primeiras semanas cruzando o oceano em dias ensolarados e com o mar calmo, até entrarmos no estreito do Canadá, quando as águas gélidas representavam uma ameaça assustadora para qualquer corpo que caísse no mar. Enfrentamos uma tempestade por dois dias seguidos, mas o valente navio resistiu aos açoites das gigantescas ondas continuando a rumar para o norte.
- Não subestime este mar calmo Sr. Gustav. - as palavras do capitão ficaram gravadas para sempre como um aviso para mim. - a temperatura pode matar um homem em poucos minutos.- dizendo isto acendeu um cigarro e prosseguiu andandos serenamente pelo convés, na noite calma e estrelada que retornara para alívio da tripulação.
Permaneci encostado na amurada do navio observando o horizonte, enquanto alguns blocos de gelo começavam a aparecer na água denunciando nossa aproximação com o destino. E assim com o passar dos dias, os blocos aumentaram de tamanho e cada vez mais preenchiam a paisagem aproximando-se do navio, que rumava vagarosamente desvencilhando-se dos mais perigosos como se esquivasse de um labirinto de gelo. Jamais esquecerei a manhã em que toda a tripulação foi surpreendida por um colossal iceberg que passou próximo ao navio, fazendo a embarcação parecer um frágil barquinho de brinquedo diante do tamanho da montanha gelada flutuante. Avisados pelo apito gritante do barco os tripulantes saíram para fora, enquanto outros se amontoavam nas janelas para contemplar no topo do iceber um majestoso urso polar, que observava em silêncio a atrevida embarcação invadir seu frio e pacato reino.
Depois de 54 dias de viagem pelo Atlântico, o St. Paul Vernon II parou na planície de gelo distante 13 quilômetros do acampamento inglês. Um grupo de marinheiros tentava remover com pás a fina camada de gelo formada no piso do convés. Robert Fallen vistoriava o serviço e enquanto arrumávamos os trenós para prosseguir a viagem, o capitão nos deu seu último conselho antes de descermos com a bagagem e os cães na planície de Alert. Aproximou-se de mim e de Frank e vestindo um grosso casaco coberto de neve, apertou nossas mãos despendindo-se:
- Desejo-lhes boa sorte senhores, e espero que não estejam a procura da fonte de gelo negro.
- Como soube da fonte gelo negro capitão? - perguntou Frank olhando para o experiente homem do mar.
- Nas minhas viagens trouxe outros exploradores ambiciosos a procura da fonte, mas ninguém conseguiu encontrá-la até hoje.
- Como sabe que vamos procurá-la capitão?
- Durante a tempestade um de meus oficiais encontrou seu diário perdido no canto do convés e me entregou, perdoe-me o atrevimento mas tive que abrir o livro para identificar o dono, e foi assim que li uma de suas anotações mencionando o roteiro da expedição de Oxford Cliff.
- Agora compreendo capitão - ao escutar o nome de Oxford Cliff entendi como Robert Fallen havia descoberto nossa missão. Não havia mais como encobrir nosso objetivo, e apenas concordei com a cabeça observando o capitão com o semblante preocupado nos encarando.
Oxford Cliff o famoso explorador irlandês, viajou ao Ártico pela primeira vez aos 21 anos de idade, convidado por um capitão da marinha inglesa que ingressara nas viagens de exploração. E assim o aventureiro passou os 35 anos seguintes a bordo de navios que rumavam para o norte. Com o passar do tempo sua ousadia rendeu-lhe notoriedade junto a sociedade inglesa, o que lhe possibilitou montar pessoalmente sua primeira expedição rumo ao continente branco aos 34 anos, com o único objetivo de encontrar a lendária fonte de um metal desconhecido denominado gelo negro. De acordo com os relatos dos exploradores antigos, além de outros documentos históricos acerca do lugar, o misterioso metal seria encontrado dentro de uma gruta escondida na região de Alert. Tal notícia despertou o interesse imediato de nações como Inglaterra, França, Portugal e Espanha, uma vez que a descoberta do gelo negro resultaria em superioridade bélica para a nação dententora do segredo. Durante anos consecutivos expedições foram montadas e enviadas pelos países com o objetivo de localizar a fonte do metal, embora todas tenham fracassado. Neste ímpeto aventureiro muitas vidas foram perdidas, Oxford Cliff nunca mais foi visto depois empreender uma busca pela planície de Alert com mais quatro exploradores, e apenas um deles retornou com o diário do aventureiro, mas morreu antes de ser encontrado por uma equipe de resgate. Quatro navios despareceram em alto mar com toda a tripulação, e o próprio Robert Fallen havia perdido seu irmão, capitão de um dos navios naufragados.
- Gustav! Frank! nao façam isto, insisto pela última vez.
Mal conseguíamos escutar a voz do capitão, em meio ao barulho do vento congelante do Ártico, junto ao latido dos cães presos aos trenós. Olhei para longe e tentei em vão distiguir o horizonte branco que fundia-se com o próprio céu.
- Perdoe-me capitão, mas fomos pagos pelo governo inglês para tentar encontrar a fonte, e como já sabe eu tenho em mãos um material valioso que acredito que me levará até o metal - Estendi meu braço e apanhei o diário que Robert Fallen me entregou.
- E quanto a advertência deixada por Oxford Cliff no final de seu diário Sr. Gustav?
- Esta falando da ameaça para os exploradores ambiciosos?
- Sim, estou, e se acredita na veracidade das informações deveria acreditar também na última mensagem deixada por Oxford Cliff.
- Capitão! Conhece algum explorador que não seja ambicioso? francamente não acredito nas últimas palavras redigidas. Provavelmente estas linhas tenham sido uma tentativa de resguardar o segredo do gelo negro e afugentar exploradores indesejados.
- Vejo que não posso dissuadi-lo de seu intento Sr Gustav, e espero sinceramente que tenha razão.
O Vento congelante aumentava sua força a cada minuto que passava. Os cães permaneciam agrupados enquanto a neve caia naquela paisagem assutadora.
O capitão permaneceu em silêncio nos observando por alguns instantes, enquanto minhas mãos abriam o pequeno díario na última página, para reencontrar a mensagem que eu já guardara na memória. Frank Thompsom e Robert Fallen aproximaram-se curiosos de mim, e juntos lemos as últimas palavras do diário do explorador irlandês, que soavam como uma terrível condenação sobre todos os que buscavam a fonte de gelo negro: "Para a segurança da vida de todos os homens que tentarem descobrir a fonte de gelo negro, deixo registrada minhas últimas palavras: afastem-se da fonte de gelo negro; aqueles que a encontrarem por ambição, numa estátua de gelo negro se converterão." Curiosamente as últimas palavras da mensagen estavam quase ilegíveis, observei atentamente e percebi que a caligrafia mudava conforme o texto aproximava-se do fim, como se Oxford Cliff tivesse sido impedido de escrever naturalmente aquelas últimas letras na folha de papel.
A ameaça da mensagem no diário de Oxford Cliff, além das advertências do capitão Robert Fallen não nos impediram de partir naquela fria manhã; e assim rumamos em direção ao acampamento na planície de Alert, enquanto o capitão nos observava ao longe até desaparecermos de sua visão, engolidos pela intensa névoa daquela paisagem de gelo.
Dezessete dias após a nossa partida reencontramos o St Paul Vernon II no mesmo local ainda preso pelo chão de gelo, e frustados com nosso fracasso na busca pela fonte de gelo negro. Esperamos mais oito dias até que o chão da planície quebrasse permitindo ao navio prosseguir a viagem. Em nosso retorno a Inglaterra narramos ao capitão nossa expedição, seguindo minuciosamente as pistas deixadas pelo explorador irlandês. Abrimos um grande mapa do Ártico numa mesa refazendo com o lápis todo percursso que empreendemos em vão. Depois de tantas expedições sem obter sucesso, começamos a refletir se Oxford Cliff e a fonte de gelo negro, não seriam apenas mais uma dentre tantas lendas criadas pelos homens dos mares; e assim mantivemos nossos pensamentos até o ano de 1929.
Em Outubro de 1929 dois pesquisadores norte-americanos sofreram um acidente na planície de Alert, durante escavações para estudo acerca do degelo dos grandes icebers. Ao caminhar sobre a perigosa superfície, ambos foram supreendidos por uma traiçoeira fenda escondida por uma fina camada de gelo, que os levou a cair de uma altura de aproximadamente 5 metros, e escorregar por um corredor de gelo que terminava numa câmara subterrânea. Quando um dos homens acendeu a lanterna na escuridão, deparou-se com a inacreditável cena de uma estátua de um explorador sentado numa cadeira. Aproximaram-se e notaram que a estátua parecia feita de um metal negro.
Assim que soube da decoberta entrei em contato com Frank Thompsom que agora tornara-se professor de geologia, e duas semanas depois estávamos viajando para Londres, pois soubemos que a estátua seria exposta num dos museus da cidade.
Não tenho palavras para descrever ao meu leitor a emoção e o entusiasmo que me dominaram, quando entramos na sala do museu, onde no centro do recinto descansava a solitária estátua negra de um explorador com o semblante sério, sentado numa cadeira com as laterais ricamente detalhadas, e os braços repousando nos descansos. Observei na mão direita da estátua os dedos compridos e finos suspensos no ar, que brilhavam com a luz do ambiente; pareciam ter sido congelados inesperadamente, e eternizavam o movimento daquela mão para todos os curiosos visitantes. Meu amigo professor permaneceu mudo ao meu lado por alguns instantes, e em seguida me chamou a atenção para a outra mão da estátua. Olhei para a outra mão e notei que segurava uma caneta. Lembrei imediatamente da mensagem escrita no final do diário de Oxford Cliff, com a estranha caligrafia, e um grande temor se apoderou de mim quando considerei a possibilidade, de que talvez o último ato daquele homem tenha sido escrever uma mensagem, informando o perigo que representava a fonte de gelo negro enquanto seus dedos congelavam a cada segundo; isto explicaria a caligrafia cada vez mais ilegível da mensagem.
- Gustav! não esta achando que a estátua é...? - Frank me observava absorvido pelo mistério da estátua, e com o olhar reflexivo distante que tornava a sua voz quase imperceptível.
Mas antes que Frank Thompsom terminasse a pergunta o interrompi rapidamente voltando a realidade:
-Não Frank! claro que não! o que você esta dizendo?
Sinto-me na obrigação de confessar ao meu leitor que minhas palavras proferidas, não foram sinceras no dia em que visitei a estátua com Frank Thompsom; desde o primeiro momento nunca tive a certeza sobre a origem da estátua que repousava naquele museu, sobretudo depois que exames realizados por renomados Institutos Europeus, constataram a presença de um metal desconhecido presente na composição daquele objeto. Até hoje visito o museu e nestas ocasiões sempre adentro na sala destinada exclusivamente à estátua de Oxford Cliff, este foi o nome dado ao objeto. Contemplo-a por alguns minutos em silêncio. Sua imagem evoca em minha memória o passado de aventuras incríveis pelas quais passei, junto com meu amigo Frank Thompsom, e vejo que tivemos muita sorte em retornar vivos da expedição do St Paul Vernon II. Mas uma pergunta sempre emergirá em mim, quando me deparar com a imagem do homem sério sentado na cadeira olhando para a frente: Aquela será apenas uma estátua de metal de um homem sentado na cadeira? ou trata-se do próprio Oxford Cliff vítima de uma ambição e de uma história inacreditável, clamando para que a ciência descubra a verdade que permanece adormecida naquela sala de museu?

Um comentário:

Cristiana Fonseca disse...

Adorei o conto, meu amor.
Uma bela viagem, uma bela aventura, só poderia vir mesmo de um escritor.
Amo vc
Cris