sexta-feira, 8 de agosto de 2008

A MISSÃO DO CAVALEIRO AHIB SIM

Os olhos de Terik Shamuk mal conseguiam permanecer abertos diante da tempestade de areia que invadia a sua tenda na planície de Fulkaham. Num passe de mágica o sol escaldante do deserto desapareceu no seu momento de ápice, dando espaço a uma espessa massa de pó amarelada que se elevava no horizonte, aproximando-se do acampamento numa nuvem de areia assustadora que avançava em direção ao pequeno grupo de tendas, devorando as gigantescas dunas e agitando os animais. Os ajudantes de serviços corriam em meio à escuridão de poeira carregando bagagens e suprimentos, algumas mulheres atravessavam de uma tenda para a outra carregando crianças de colo que choravam, outros criados colocavam vendas sobre os olhos dos cavalos que permaneciam presos, ou simplesmente soltavam-nos das cordas para que tentassem fugir diante da visão assustadora; ali na imensidão vazia e intimidadora daquela natureza eram engolidos pela areia, jogados pelo vento como frágeis bonecos insignificantes diante da força do deserto. Num rápido movimento Terik Shamuk colocou a cabeça pra fora da tenda, que lutava presa com as amarras ao solo para não ser arrancada pela fúria do vento. Seus olhos negros observaram a tempestade engolir o acampamento por completo, voltou para dentro e cobriu a pequena fresta de tecido que expunha sua visão e sua pele queimada e sulcada pelo clima árido do lugar, único espaço de seu corpo que ainda permanecia descoberto; e ali abraçado pela tempestade temida por gerações de nômades, envolto pela fantástica e assustadora tempestade do deserto que habitava as fábulas dos persas há muitos séculos, rogou a Alá que poupasse sua vida e de seus companheiros mercadores.
Vinte minutos se passaram com o som do vento cortante esbarrando no tecido da tenda e agitando-a com violência, mas quando a tempestade cessou, assim que saiu do seu interior, o mercador de especiarias constatou que grande parte de seus amigos havia desaparecido, algumas outras tendas não resistiram e foram levadas pelas rajadas, olhou a sua direita e aonde deveria haver um conjunto de cinco tendas que abrigavam mantimentos, agora havia somente uma enorme montanha de areia que sepultara vários caixotes dos mais diversos suprimentos que seguiam para a cidade do Cairo. Terik desenrolou o turbante descobrindo seu nariz e sua boca e pode ver ao longe, na fina nuvem de areia que se desfazia com a luz do sol a perfura-la em inúmeros pontos, rompendo aquela atmosfera escura que pairava sobre o acampamento, a silhueta de um cavaleiro que a rápidos trotes aproximava-se da sua tenda. O rastro discreto de areia que se levantava no cume de uma gigantesca duna foi ficando maior, e aos poucos o som dos rápidos galopes do cavalo árabe que afundavam na areia do solo tornou-se mais fortes até parar diante da pessoa de Terik Shamuk. Em cima do belo animal de respiração ofegante ainda assustado pela tempestade, um homem alto de expressão séria, com cabelos negros e grandes olhos semicerrados observou Terik e parte do acampamento que milagrosamente permanecia de pé. Trajava longos tecidos negros e na cintura carregava uma espada sarracena ricamente adornada com desenhos simbólicos. Voltou-se para Terik fitando-o nos olhos e perguntou-lhe:
- Procuro por Omar Yshtaham?...você o conhece?
- Sim,...eu o acompanhei durante a primeira etapa da viagem,...eu o acompanhei até o oásis de Fulkaham...e depois nos separamos...ele seguiu sozinho...
- Em que direção?...perdoe-me pela brevidade de minhas palavras que me impediram de apresentar-me,...meu nome é Ahib Sim, mensageiro enviado pela profetiza Eva, nobre mulher conhecida na corte de Sukramm; sigo numa missão específica que me foi designada por tal mulher...
O homem parecia apressado tentando controlar o animal arredio, e a luz do sol retornava com toda a intensidade revelando um cenário de desolação no acampamento. Terik estendeu seu braço para o norte apontando na direção tomada por Omar Yshtaham ao deixar o oásis de Fulkaham e lhe disse:
- Ele seguiu nesta direção,... mas não estava só,...eu me lemb,...
- Eu sei!...interrompeu-o subitamente o cavaleiro - ...a profetiza Eva predisse que ele estaria acompanhado por um soldado quando partisse de Fulkaham;...mais uma vez peço minhas desculpas pela ausência de informações mas não há tempo para mais palavras... - e dizendo isto virou seu animal com habilidade partindo em direção ao norte.
Terik o acompanhou com os olhos até o misterioso cavaleiro desaparecer por completo no horizonte engolido pelas montanhas de areia. Mais alguns minutos e o acampamento foi se reagrupando, os homens pareciam lutar contra o tempo na busca pelos sobreviventes desaparecidos, alguns se juntavam em pequenos grupos e cavavam desenfreadamente em vários pontos do solo na busca dos amigos e mantimentos que foram tragados pela areia. Caminhando rapidamente pelo acampamento Terik pode ver uma mãe que chorava por ainda não ter encontrado o filho. Finalmente adentrou numa tenda aonde um de seus amigos estava deitado no chão, sendo atendido pelo médico que fazia um curativo no seu braço esquerdo, atingido por uma pá jogada contra o seu corpo pelo forte vento.
A viagem que separava o acampamento de Terik Shamuk do oásis de Fulkaham durava aproximadamente uma hora. O cavaleiro atravessava solitário o solo dourado e homogêneo da imensidão do deserto, deixando um rastro que em poucos minutos era encoberto pela areia; como que se ali mesmo naquele instante o deserto quisesse condena-lo àquelas areias,...ao esquecimento... Finalmente parou seu cavalo no pico de uma grande montanha de areia e observando o horizonte, localizou uma pequena mancha verde que se destacava na imensidão amarela do deserto. Como um pequeno espaço estranho àquele ambiente, o oásis de Fulkaham resistira às guerras, ao tempo, e sobretudo ao deserto, único ponto de abastecimento para as diversas caravanas que o atravessavam, tornara-se na última fronteira, no último porto a oferecer alguma segurança para os homens que ousavam tal intento. A vegetação viva e espessa do oásis contrastava com a uniformidade do deserto, grandes árvores cercavam um espaço disputado pelos homens e animais, cujo centro era ocupado por um pequeno lago cristalino cravado no coração daquele lugar. Uma pequena multidão aglomerava-se em volta de um poço para obter água, lançando os baldes abaixo que retornavam puxados pelas cordas. Por trás de alguns arbustos um grupo de camelos descansavam deitados a sombra de algumas árvores, enquanto os viajantes os preparavam amarrando sacos e bagagens sobre o lombo dos animais. O cavaleiro saudou um homem baixo, moreno, com a grossa barba branca envelhecida pelo tempo e com um turbante sob a cabeça, carregava um balde com água para os cavalos, apresentou-se como sendo um tratador de animais e ofereceu-se
para cuidar de seu cavalo em troca de algumas moedas, trabalho que foi aceito imediatamente.
O cavaleiro depositou algumas moedas de prata nas mãos do tratador, e quando preparava-se para partir, o velho homem o segurou pelo braço estendendo-lhe a outra mão que continha um envelope lacrado com o selo Real da casa de Omar Yshtaham; o velho o olhou fixamente, esboçou um sorriso enquanto permanecia com o braço estendido em direção ao cavaleiro e lhe disse:
- Esta mensagem foi deixada por Omar Yshtaham para o cavaleiro Ahib Sim, ele me disse que um cavaleiro vestido de preto o procuraria em alguns dias aqui, e me incumbiu de entregar pessoalmente esta mensagem.
O cavaleiro apanhou a mensagem, quebrou o lacre com o selo real e desdobrou o papel empoeirado. Uma curta mensagem numa caligrafia árabe dizia: “Prezado Ahib Sim,...fiel cavaleiro da casa real de Sukramm,...Se estiver lendo esta mensagem então minhas suspeitas se confirmaram e já não estarei no oásis de Fulkaham. No entanto rogo-lhe que embora tenha sido designado pela profetiza Eva, nobre mulher da qual dedico todo respeito e admiração, para encontrar-me e trazer-me de volta ao meu reino, que agora mesmo desista de tal intento pois jamais o farei,...e peço que retorne ao seu reino e sinta-se desobrigado desta missão através de minhas palavras escritas neste papel; afirmo-lhe que tenho forte motivo pra empreender a minha fuga, e temo que sua insistência em achar-me o leve a tal revelação que me colocou neste estado, o deixando inevitavelmente no mesmo situação em que me encontro hoje,... Omar Yshtaham”.
Os olhos de Ahib Sim observaram ao longe e mais uma vez perderam-se nas areias do deserto, confusos, imersos nas palavras de alerta de Omar Yshtaham para que desistisse de sua missão. Sua mente o questionava acerca de qual seria este forte motivo que o impeliria a retroceder, seus pensamentos buscavam esta resposta ao mesmo tempo que aumentavam-lhe a curiosidade acerca do mistério. Mas sabia que a idéia de retornar ao seu reino sem ter cumprido sua missão era inadmissível, e o faria se sentir inútil e fracassado diante da profetiza Eva.
A noite derramou seu manto sobre as areias quentes, e algumas poucas luzes de velas nas tendas do acampamento rompiam aquela vastidão negra do silêncio árido do deserto. O cavaleiro permaneceu a noite toda dentro de uma das tendas absorvido por seus pensamentos, e várias vezes releu a mensagem que tinha em mãos deixada por Omar; pela manhã tomou a decisão.
O cavalo invadia o deserto rapidamente em direção ao rumo tomado por Omar Yshtaham. Inclinado sobre o animal o cavaleiro apenas pensava em descobrir o motivo da fuga de Omar, refletia sobre o seu desaparecimento sem deixar qualquer notícia despertando o temor na casa Real, mas mantinha sobretudo o seu propósito de traze-lo de volta.
Depois de uma hora de viagem, a imagem angustiante e imutável da imensidão amarela daquele lugar foi transformada quando um pequeno ponto escuro ao longe sobressaiu aos olhos do cavaleiro, ao se aproximar a figura disforme foi ficando cada vez mais nítida, até desvendar-se aos olhos daquele homem na imagem de uma tenda tendo uma bandeira bem alta ao seu lado. O cavalo se aproximou e parou quase na entrada, não havia qualquer ruído ou vestígio da presença de alguém. O cavaleiro desmontou e desembainhou a espada caminhando vagarosamente em direção ao véu que balançava com o vento, e que cobria parcialmente a entrada da tenda. Suas mãos empurraram o véu para o lado, e então pode ver que no interior daquele local havia apenas um tapete colorido com uma vasilha de água ao lado de uma bacia contendo algumas frutas. Sobre o tapete um outro papel lacrado com o selo Real chamou a atenção de Ahib Sim, descansou a espada que brilhava junto a cintura, aproximou-se cuidadosamente e inclinou-se para pegar o papel, quando o trouxe próximos aos olhos pode ler a seguinte mensagem: “Ao desventurado cavaleiro Ahib Sim”, sentou no tapete e mais uma vez desdobrou o papel, então seus olhos percorreram as seguintes linhas:
“Meu nobre cavaleiro Ahib Sim,...Lamento profundamente que não tenha atendido a minhas recomendações, pois asseguro-lhe que o fiz apenas para sua própria segurança e descanso, mesmo não tendo o destino o levado de volta ao seu reino, no que certamente foi o meu maior anseio desde o momento em que tomei conhecimento de sua partida na missão que lhe foi designada pela profetiza Eva, respeito tua decisão de tentar encontrar-me, o que imagino que jamais conseguirá, entendendo ao mesmo tempo que sua busca infrutífera não me da mais o direito de priva-lo da realidade dos acontecimentos que me levaram a tomar minha decisão de partir. Tal determinação de sua própria pessoa merece ao menos que o motivo lhe seja revelado, por mais terrível que se apresente. Apenas desde já lamento pelo mal que lhe causarei depois que terminar de ler esta mensagem.
A explicação para tudo o que aconteceu certamente é a mais absurda de todas as circunstâncias que cruzaram minha vida, mas não menos real por isso. Não vou entrar em detalhes sobre como descobri o que lerá nas próximas linhas, mas o motivo de minha partida foi descobrir que o meu mundo,... que o nosso mundo meu amigo,... não passa de uma alegoria, de um engano, de uma montagem, de um mundo irreal.... Isto mesmo!,... peço meu nobre cavaleiro que leia minhas palavras exatamente como estão escritas, porque eu lhe asseguro com toda a minha certeza,... com toda a minha convicção,... que todo o nosso mundo sequer existe no plano da realidade, jamais existiu!...Este deserto onde você encontra-se neste momento, a tempestade de areia, as caravanas, o oásis, Terik Shamuk, o velho tratador de animais, eu e você meu nobre cavaleiro,... não somos nada mais do que invenção,... nada mais do que fruto da criatividade de alguma pessoa que simplesmente inventou uma história, um fábula, da qual somos meros personagens. Neste exato momento algum leitor esta lendo nossa história, passando seus olhos sobre estas linhas, tão ávido quanto você estava para descobrir esta terrível revelação. Talvez agora entenda que minha fuga, meu desaparecimento é a forma que encontrei de rebelar-me contra esta situação de apatia, de sempre estar a disposição do desconhecido leitor para deleita-lo com minha inocente vida de personagem literário.
Lamento profundamente que tenha sido o portador de tal notícia, mas relembro-lhe que foi sua própria decisão de encontrar a resposta que o afligia, quando não atendeu a minha recomendação, que o trouxe a esta mensagem. Imagino como está se sentindo neste exato momento meu nobre cavaleiro, e diante de tal revelação assombrosa não tenho mais palavras....com pesar,...Omar Yshtaham..."

Durante uma hora não houve movimento na tenda, sentado no tapete o cavaleiro refletia sobre cada palavra escrita por Omar. As vezes desprendia-se daquelas linhas e mantinha um olhar perdido, confuso, que atravessava o véu de entrada da tenda, e fitava o cavalo imóvel do lado de fora. Finalmente levantou-se, atravessou a pequena passagem encoberta pelo tecido e retorno ao deserto solitário, percebeu então que a sua direita o céu parecia estar mais escuro, uma outra tempestade de areia aproximava-se, mas desta vez não sabia mais no que acreditar. Montou no cavalo e ainda pode ver ao longe um pequeno grupo de camelos transpostando bagagens, seus olhos puderam distinguir apenas duas pessoas, pareciam um casal de amantes, ali, naquele lugar esquecido fugindo do mundo. O homem e a mulher montados no mesmo cavalo iam adiante, ela abraçava-lhe fortemente pelas costas enquanto distanciavam-se, enquanto desapareciam como todas as certezas que habitavam-lhe a mente até o dia em que resolvera encontrar Omar Yshtaham,...Então virou seu cavalo em sentido contrário ao da tempestade que levantava-se ao norte e partiu para o seu reino, mal sabendo se ele realmente existia...

3 comentários:

Cristiana Fonseca disse...

Oi Cris,
Este conto esta fascinante, por ser obscuro,ambíguo, misterioso e enigmático.
Sublime,simplesmente sublime.
Você quanto tua escrita são encantadores.
Beijos,
Cris

Cristiana Fonseca disse...

Oi Cris,
Voltei a ler teu conto,me perdi em tua escrita e me encotrei no belo desenlace que o deu.
Beijos enormes,
Cris

Cristiana Fonseca disse...

Oi meu amor,
Amo você , obrigada pelas palavras gentis e carinhosas.
Beijos carinhosos,
Cris